Pior que Acredito

Ele bate. Ela abre.

- Vim te buscar. - ele diz.
- Que isso?
- Anda. Pega tuas coisas.
- Alguma vez eu disse que fugiria com você? Eu disse?
- Eu vim te buscar. E pronto.
- Pelo amor de Deus, some daqui.
- Pega lá suas coisas.
- Eu sou casada! Ca-sa-da!
- E de repente isso tem importância?
- Eu amo meu marido.
- Eu acredito. Pior que acredito.
- Você dificulta tanto as coisas.
- Eu facilito as coisas.
- Até demais! Acha que é assim, desse jeito?
- Anda. Pega tuas coisas.
- Para! Para! Deus do céu!
- Você é engraçada.
- Você me aparece aqui do nada.
- Vive dizendo: meu marido isso, meu marido aquilo.
- Nunca disse que fugiria com você.
- Com quem então? Quem mais compraria teu barulho?
- Eu sei, meu amor. Eu sei. Mas não é assim.
- Você pega tuas coisas, a gente entra no carro e pronto.

Ela pensativa. Ele impaciente, cara de quem espera o caixa eletrônico cuspir o dinheiro.

- Não vou. - ela diz.
- Presta atenção: é sua última chance.
- Eu. Não. Vou.
- Porque você dificulta tanto as coisas?
- Eu não posso. Eu queria, mas não posso.
- O que te prende aqui?
- Eu sou casada.
- E vem dizer isso pra mim?
- É diferente, meu amor.
- Rá! Logo pra mim?
- É diferente.
- O que é tão diferente?
- A gente. A gente...

Entreolham-se.

- Acabou. - ele diz.
- Não. Isso não.
- Você podia entrar naquele carro comigo. Não é difícil. São vinte passos.
- Eu queria! Juro que queria!
- E teríamos uma vida inteira pela frente.
- Eu não vou aceitar.
- Vinte passos. Por que é tão difícil?
- Eu não vou aceitar.
- Não tem o que aceitar.
- Você não vai se livrar de mim.
- Vinte passos.
- Eu não posso!

Ela chora. Ele observa, indeciso; quer ir embora, mas não desse jeito.

- Se acalma. - ele diz.
- Não vê o quanto é difícil?
- Seu marido chega daqui a pouco.
- É muita coisa na minha cabeça.
- Seca esse rosto.
- Você ao menos acredita quando eu digo que queria?
- Que diferença faz?
- O que eu sinto, o amor que eu sinto. Não faz diferença?
Você não vem, com ou sem amor você não vem.

Ele vira as costas; parece um bom um momento pra sair de cena.

- Queria te amar mais. - ela diz. - Queria te amar do seu jeito.
- O que você espera que eu diga?
- Que acredita.
- Eu acredito. Pior que acredito.

Comum

Ela controlava a porra do universo e
quando falava, as palavras iam pelo mundo
fazendo o que ela queria.

Pude vê-la, quatro, cinco anos,
rodeada de coleguinhas brincando de pique-esconde
embora todos quisessem pique-tá.

Era comum, rosto comum, corpo comum,
mas falava e a porra do universo obedecia
e trazia nos olhos a certeza de saber disso.

E perguntava coisas da minha vida
que eu não digo pra ninguém, e eu contava
tudo, sem pudor, e não era uma escolha.

E quando virava as costas e me ignorava,
era como se o universo inteiro mudasse de lugar
me deixando num canto onde não se existe.

Reentrâncias

Aqueles olhos, cravados nos meus. E parecia que nada seria dito, que o silêncio permaneceria impenetrável, o ar espesso, ainda que ficássemos ali, sentados, por centenas de anos. Os olhos, duas bolas de gude, enormes, negros como a noite mais escura que já vi.

Fitou o copo de vodca, acariciou a superfície da bebida com a ponta do dedo, lambeu. Os lábios, saltados, vermelhos, pareciam preguiçosos; nada tinham para me dizer.

Ela estava particularmente bonita: um tomara-que-caia cor de uva, os cabelos escuros ondulando por sobre as costas, os ombros brancos, desnudos, a pele. Mas trazia nos olhos uma tristeza que me sufocava; eu queria fugir.

O bar estava quase vazio. Era quarta, chovia. Todos pareciam ter um bom motivo para estar ali, algo precisando ser afogado num copo de vodca. Eu não suportava mais aquilo, o garçom passando na nossa frente o tempo todo, como se aquele silêncio o angustiasse mais do que a mim. Alguma coisa precisava ser dita.

- Tem um cigarro? – ela perguntou.

Saquei o maço e lhe dei um. Ela não fumava, mas gostava do espetáculo, da fumaça dançando pelo ar. Acendeu, tragou, cuspiu uma baforada pro alto e ficou assistindo os círculos, suas reentrâncias.

- Se eu sumisse, desaparecesse... Seria uma alívio, né? – ela disse, preguiçosa, quase não ouvi.

Tragou o cigarro novamente, apertou os olhos.

- Digo, pra mim. Um alívio...
- Garçom! – gritei. Ele veio. – Outra vodca.

Eu sabia o que estava por vir; é como pular dum prédio, não tem volta.

– Deixa eu te dizer uma coisa... Na vida, – e mal comecei, me arrependi. – é preciso aprender a conviver com determinadas situações. Nem tudo é como a gente gostaria que fosse. Veja, essa busca frenética pela felicidade na qual todos estamos envolvidos, de um jeito ou de outro, não passa de ilusão; é a velha cenoura pendurada na frente do burro. Precisamos nos adaptar é à realidade.

Ela não respondeu. Estava farta daquilo. Seria melhor, mil vezes melhor, se tivesse berrado, xingado, mas me condenou tão somente a ouvir sua respiração, alto e forte, como se a ouvisse através dum estetoscópio. Os passos do garçom, as frases esparsas das mesas vizinhas, o samba cafona de fundo, o rangido da porta do banheiro a metros de distância; era uma massa de som turva, distante, sem sincronia com a imagem.

Buf! Uma pancada seca, um estrondo que me arrancou do transe. Era o garçom, baixando meu copo de vodca na mesa. Virei numa talagada só; não gosto de vodca, mas qualquer quentura era bem-vinda.

- Seus discursos... – ela começou, mas a voz perdeu força até sumir. Desistiu.

Foi quando ela, num gesto brusco, se levantou da mesa. Achei que fosse embora, parecia fora de si. Mas enlaçou o garçom pela cintura, pousou a cabeça em seu ombro e começou a dançar. Lentamente. Pra lá e pra cá... O garçom acompanhava os movimentos com respeito, um respeito quase fúnebre. Ela apertava os olhos, pressionava a cabeça contra o peito do garçom, enquanto a música se arrastava, os acordes pesados, as notas empurrando-se umas às outras, com preguiça de sair.

Nas mesas vizinhas, esqueceram-se dos assuntos sonolentos, dos copos mornos de cerveja, e todos passaram a assistir àquela dança ritualística. O bar inteiro, tomado pelo mesmo sentimento, a mesma dor.

Quando a música terminou, todos pareciam acordar de um sono profundo. Não se reconheciam mais como gente ordinária num bar de esquina, bebendo cerveja morna numa quarta-feira chuvosa. A cena os havia transportado.

- Vou indo. – ela disse.

Não me mexi. Não adiantava. Ela abriu a bolsa, tirou uma nota de dez, largou sobre a mesa e virou as costas, sem olhar para mim. Assistimos, o bar e eu, os passos em direção à rua, os cabelos pendulando por sobre os ombros desnudos, a pele branca, o tomara-que-caia violeta, os pés pisando firmes no ladrilho.

Permaneci sentado, olhando para a cadeira vazia à minha frente. O garçom me ofereceu outra dose de vodca. Não aceitei. Não gosto de vodca.

Entranhas

Era sonho, ela sabia. Mas sentiu o desespero que só se pode sentir acordado. A filha se desfazendo em lágrimas: “Me largou, mãe! E grávida! Grávida!”. Abraçava a coitada, acariciava o barrigão de sete meses: “A mãe avisou. Não se deixa de ouvir a mãe”.

Acordou com a respiração obstruída, um aperto no peito. Encheu os pulmões a muito custo e soltou uma lufada de ar pesada, grave. Sob os roncos do marido, pulou da cama, pousou os pés nos chinelinhos que dormiam ali do lado e seguiu arrastando-os até a cozinha, onde serviu-se dum copo d’água fria. Não terminou de beber. O aperto não dava trégua, seguia castigando suas têmporas, seu esôfago, suas pernas, que latejavam, tremiam.

Ajoelhou-se perante o sofá, o rosto enterrado no assento, os braços circundando a cabeça, as mãos crispadas: implorou aos céus que livrassem a filha daquele homem canhestro e desprovido de apelos que, sabe lá por intermédio de que mandingas, levou embora a guria que ainda ontem pedalava seu velotrol cor de rosa pelo quintal. Precisava fazê-la entender que sair de casa, abandonar a família por uma aventura, fosse com quem fosse, ainda mais com esse!, era uma violência das mais cruéis contra o coração duma mãe; e que, desde a primeira vez em que vira aquele rosto petulante, previra - com o mesmo instinto com que mães salvam filhos desde tempos imemoriais - que não se tratava de alguém confiável. Ninguém era, aliás. A filha, para muitos, sabia, não passava duma moça de vozinha enjoada, exageradamente simpática, que carecia de dureza no trato para ganhar alguma solidez moral. Mas praquele homenzinho hediondo, sua menina não passava de carne para consumo imediato – seios, coxas e nádegas compradas a quilo no açougue, onde não se pergunta pela história ou família do animal abatido.

“Deixa quebrar a cara”, dizia o pai, com o rosto matizado pelo verde dos gramados da tevê. As irmãs não mediam as palavras: “Vagabunda. Sempre foi”. E a mãe corria do quarto pra sala, da sala pro quarto, procurando quem lhe desse ouvidos; em vão, posto que era mãe e estava sozinha na gestação de suas agonias. Ninguém tomava parte de sua dor, de seu calvário, muito menos ela que fingia, e na certa fingia, ser feliz com aquele demônio, como se fosse possível.

- Alô. – disse a voz do outro lado da linha.

Um arrepio lhe percorreu as vértebras de alto a baixo. Aquela voz grotesca, apática, inconfundível. Sabia que corria o risco de ouvi-la ligando assim, no meio da noite, mas resolveu apostar que a filha atenderia. Desligou. Não aceitava trocar uma palavra que fosse com aquele homem.

Pouco depois, o telefone tocou de volta.

- Mãe, já falei pra não desligar na cara do meu marido!

Marido. E essa agora?! Sete anos de namoro no sofá da sala, debaixo do olhar atento de pais, tios e primos; aos quais seguiram-se dois anos de noivado casto, que teve como maior pecado os beijos que vez por outra se permitia receber no lóbulo da orelha; casou de branco na igreja, com todas as bênçãos celestes existentes e que ainda se hão de impetrar; padeceu durante décadas as aflições dum cotidiano monocromático que pouco a pouco tingiu de cinza o jovenzinho esbelto que lhe beijava as orelhas, transformando-o num buda de louça que nada fazia além de gritar, brigar e roncar; tudo isso para ouvir uma pirralha chamar o primeiro malandro que achou na esquina de “marido”.

- A mãe sonhou com você, filha.
- Não quero nem ouvir.
- Esse daí te largava. Com barrigão e tudo.
- Ah, mãe! Faça-me o favor!
- É Deus avisando, filha.

Tempos depois, voltando do mercado, avistou um carro vermelho estacionado no portão. Nunca vira o tal carro, mas tinha certeza de que a filha viera nele. Faro, talvez, mas ela sabia. Apertou o passo. Correu. Mas antes que alcançasse ao portão, saíram dele o pai e ela, a filha. Estavam abraçados e riam, mas fecharam o rosto quando a viram.

- Entra, entra. Vou passar um cafezinho pra gente.
- Não, mãe. Era coisa rápida.

Quis argumentar, implorar para que ficasse um cadinho que fosse, mas a filha a abraçou forte, tão forte, tão forte que sentiu os olhos marejarem. Saboreou aqueles braços, até ontem tão curtos, mas que agora lhe envolviam por inteira e ainda sobrava espaço, os dedos magros apertando suas costas por sobre a blusa de viscose, o perfume de flor, os cachos do cabelo lhe tapando a visão feito persianas, enterrada que estava naquele pescoço branco e cheio de pintas, cujas posições trazia decoradas na memória como fossem constelações, pois ficava admirando aquelas pintas sempre que a filha desmaiava de sono em seu colo e vez por outra ligava alguns pontos com hidrocor, só para vê-la acordar irritada – zanga de criança, dessas que logo passa, uma delícia –, para depois cair na gargalhada e começar ela própria a ligar os pontinhos naquelas pintas e descobrir mais e mais constelações que trazia no pescoço.

A filha entrou no carro, o tal marido esperando ao volante. O carro arrancou, não demorando a desaparecer no fim da rua. A mãe permaneceu ali, observando o horizonte que reassumia lentamente a paleta de cores habitual.

- Vamos, vamos. Entra. – alguém disse.

Encontrou todos os demais reunidos na sala. Calados, solenes. Ali tinha coisa.

- Melhor falar duma vez. – disse uma das filhas.
- Quer matar ela do coração? – retrucou o pai.
- Ai, meu Deus! Aconteceu alguma coisa!? - exclamou  mãe, levando a mão ao peito.
- Aconteceu, mãe. O fim do mundo. - disse uma das filhas
- Fica quieta! - gritou o pai.
- Fala logo! -, disse a mãe.
- Ela está grávida. Pronto! Falei!

Desabou no sofá e se não houvesse sofá desabaria no chão e não faria a menor diferença pois o sofá lhe recebeu com a dureza duma sepultura.

- E já que você não aceita o rapaz, eles vão se mudar pra São Paulo e ter o bebê perto da família dele.

Permaneceu ali, caquinhos no sofá. Não ouvia mais nada. Provavelmente diziam coisas, mas ela não estava mais ali. Estava de novo no quintal, numa tarde morna de setembro, empurrando a traseira do velotrol cor de rosa, observando o balanço daquela cabecinha cacheada, as dobrinhas do pescoço cheio de pintas, o corpinho rechonchudo de bebê. Sentiu de novo aquele impulso louco de beijar, apertar, morder, de empurrá-la de volta ventre acima e senti-la uma vez mais dentro de si, misturada às suas entranhas.

Verde-Musgo

Recolocou o Dom Quixote de capa dura verde-musgo no lugar certo, que era junto aos demais clássicos verde-musgo que enfeitavam a estante e que jamais lera, e não ali, jogado no sofá, como o encontrava todos os domingos depois que Rosana ia embora; o livro no sofá, aquele ultraje, lembrança do sem-número de vezes que insistiu para que levasse a porra do livro pra casa duma vez. Mas Rosana insistia em permanecer ali, esparramada no sofá, no seu sofá, lendo durante horas e horas naquele silêncio acintoso, quebrado apenas pelas risadas esporádicas que pareciam espirros de criança, intercalando longos momentos duma respiração pesada e doída.

Este era o saldo de um relacionamento que apresentava a mesma temperatura fosse qual fosse a estação do ano: ela lendo Dom Quixote no sofá da sala; ele no computador, alimentando janelinhas de bate-papo que piscavam, pulsavam, urgiam; todas carregadas do mistério, da excitação, da completude que jamais viria daquela mulher verde-musgo. Entre sala e quarto, um oceano, separando povos, formando em cada extremidade culturas, línguas, moedas; o que no quarto se mostrava pulsante, na sala esmaecia, adquiria os tons desbotados da pele de Rosana, a insipidez de seu sorriso simétrico, a candura de suas feições enjoativas; ao transpor os umbrais que separavam os cômodos, via-se debaixo das luzes mornas da vida real, que expunham o ridículo de suas ereções sob a bandeja do teclado. Passava pela sala à toda, o pescoço rijo, mantendo a cozinha sempre diante dos olhos, para não correr o risco de vê-la, aquele corpo estranho que se apossara da sala, do sofá, dos livros que não deviam ter outra função que não enfeitar a estante.

Quanto mais olhava praquele rosto tão familiar, mais difícil era reconhecê-lo – a fisionomia lhe escapava; o nariz, a boca, os olhos, pareciam traços dum amor do passado, de vidas passadas; uma memória genética, gravada de fato nas células, mas sem afeto algum.

Os fins de domingo, única lacuna que tinha para si, o lapso de tempo espremido entre Rosana e a hora do trabalho que já se aproximava, eram preenchidos por uma nostalgia imprecisa, uma espécie de inventário emocional que não encontrava bens a declarar; nada além daquele amor embolorado que carregava na carne feito uma invalidez.

Terminava jogado no sofá, como celebrasse a retomada do território, lembrando dos amores de infância que deixara escapar por simples inanição, pela incapacidade de reconhecer para si mesmo que amava a priminha de segundo grau com quem passava os carnavais em família na casa de praia. Agora, décadas depois, reinterpretava os sinais que à época lhe pareciam tão nebulosos, tão indecifráveis, mas que, fossem eles mais didáticos, destruiriam por completo aquele charminho bruto, o sofisticado denguinho de menina, aquele abismo de densas trevas que não exigia dele mais que um passo, um pequeno passo, para engolí-lo, mastigá-lo e cuspí-lo uma outra coisa: um alguém experimentado nos mistérios que a mente simplória do menino não é capaz de imaginar, mas para os quais a menina já quer conduzir pela mão.

Imaginou os filhos cândidos, desbotados e insípidos que teria com Rosana, todos aleijados do desejo, da chama, e para os quais não teria absolutamente nada a ensinar, pois quando o abismo lhe chamou à beira da praia, quando os adultos voltaram para casa e se viu sozinho com ela, o crepúsculo se desfazendo em manchas púrpuras por sobre o mar sonolento, as nuvens cinzentas orquestrando o golpe final no dia que agonizava, e viu aqueles olhos grandes e negros fixos nos seus, e os lábios zombeteiros disparando a pergunta fatal “já beijou?”, teve medo, sentiu os dedos dos pés queimando nos chinelos de borracha, o calor subindo pelas pernas, braços, ventre, ganhando o peito, o coração crispando, rompendo, tão quente era o sangue; viu-se pequeno, sozinho, perdido num mundo de trevas e mistérios profundos; e preferiu bancar o machinho, dando de ombros, fingindo não perceber que aqueles olhos chacoalhavam sua alma, embotavam seus sentidos virginais, condenavam-no à perdição eterna.

Dormiu no sofá.

Vácuo

olhou praquele rosto de tantas lágrimas e risos e beijos e gozos e nada viu além do vácuo chato que fazia vista grossa a um passado que tinha medo de tornar-se justamente essa zona de emoções sedimentadas e inacessíveis que agora traziam o terror das coisas que passam e convidam para que junto delas passemos donde estamos pra onde já não seremos. olhou e tentou desenterrar coisas perdidas na dobra dos dias, mas estava além de suas forças. sentiu o torpor, o desespero. mais um fim, como tantos fins... sonhara com o momento em que se libertaria, mas liberdade não tinha gosto bom. tinha gosto de vela, de chuva, de crepúsculo dominical. não é assim, não é assim!, ela dizia, seremos felizes. mas as frases quebravam longe da praia. queria até dizer sim, seremos, perpétuos e felizes, mas olhava praquele rosto de tantas festas e luas e missas e orgias e via: estou só. via que a solidão era a única coisa permanente, que o vazio cedo ou tarde lhe visitaria com seu hálito mórbido e suas palavras sensatas. dizia adeus porque já tinha ido. há tempos. dizia adeus para si, mas as lágrimas dela velavam pelos dois.

Sangue no chão de taco

Ela entrou e as paredes tremeram. Seus olhos vidrados anunciavam meu fim. A visita era rápida, estratégica, tinha pressa. Viera me eliminar. Puxou um pequeno revólver da bolsa e me acertou bem na testa. Paf! Senti um impacto. Apaguei.

Recobrei a consciência fitando as pás do ventilador de teto, que giravam, giravam. Ela sentada no chão, junto ao meu corpo, acariciando minha cabeça, beijando o buraco da bala.

- Ah, como te amo! - ela disse, percorrendo carinhosamente o diâmetro do ferimento com a ponta do dedo. - Mas não tive escolha. A vida me chamou, benzinho. Quero o risco, quero o dano, quero colecionar dores diferentes das que você me causa.

Meu sangue se espalhando lentamente pelo chão de taco, penetrando as gretas, ganhando o mundo.

- Nos amamos mais que qualquer casal já se amou. Nos amaríamos daqui a cem, duzentos anos! Por isso te matei. Porque preciso me perder na multidão, no comum. Tem um cara aí fora, na rua, me esperando. Ele é raso, não me desafia, não me acrescenta, mas ainda assim preciso me perder nos braços dele. Entende?

Não conseguia me mexer, nem falar, nem pensar. Só me era permitido ouvir. Nem dor eu sentia. Ouvia e só.

- Tive que escolher entre minha vida e a tua. Se ignorasse essa coisa berrando aqui dentro, mataria a mim mesma. O único jeito de me salvar foi sacrificando você, viver por intermédio do teu sangue. Você, meu cordeirinho pascal.

Ela levantou e foi até a cozinha. Ouvi barulho de armários, gavetas. Voltou com fósforos e fluído de isqueiro.

- Você será minha lembrança mais doce, meu idílio juvenil, a esperança do amor que não fracassa, que morre eterno, vigoroso. Por isso te matei, cordeirinho, porque te amo, porque te quero infinito, a trilha sonora da minha perdição, da minha dor.

Banhou meu corpo com o fluído, riscou o fósforo e ateou fogo. Me assistiu queimar por alguns minutos, num silêncio cerimonioso. Ouvi suas últimas palavras com alguma dificuldade, devido ao crepitar intenso da minha pele.

- Serei eternamente grata a você, benzinho, por tudo, tudo, tudo. Não pense que sou ingrata! - e secou as lágrimas e abriu um sorriso. - Ah, que besteira a minha! Você sempre me entendeu.

E foi embora, não sem antes desligar o ventilador. Fiquei ali, no chão de taco, queimando, enegrecendo, assistindo, por entre as labaredas, as pás do ventilador serem vencidas lentamente pelo ar.

Chove

E chove. Que o mundo se desfaça! Em pedaços, muitos, miúdos e odiosos. Desça sobre nós como lâminas tuas gotas, nos rasgue, nos fatie, nos lave da mentira. Foi-se mas deixou a chuva, na qual me perco, no aconchego frio, na doçura do fim. Levou no sorriso minha fé, mas deixou o rufar das trovoadas, no qual me acho. A chuva é a verdade! O crepitar das gotas no chão musicalizam o que antes era dor. Nos pingos-música, notas de ameaça, notas de promessa. Liquefeito, me desfaço no mundo, me diluo até não ser água sequer. Líquido, sou tua chuva de lágrimas que decretam a morte, saliva quente do teu beijo fatal. Chove e lava o mundo!, cobre o chão de prata e o céu de cinza fosco, nos livra do mal, afogue-a em correntes bravias. Faz-me chuva! E choverei com vigor, castigarei a cidade, inundarei as casas. Vai! Corre porque tenho a chuva! Liquefarei o mundo. Liquefarei a dor.

Ela queria uma vida

Blim-Blom! Era Joana. Joana e seu marido escritor. Ele entrou primeiro, branco e frágil feito um bule de porcelana. Olhos verdes, azuis, não sei, eram de uma cor tão fraca. Tudo nele, aliás, parecia sem cor. Sobre o quê aquela merda de homem escrevia? Talvez o problema nem fosse ele, mas o fato de estar ao lado de Joana, a mitológica, a devoradora, a avalanche de madeixas negras encaracoladas, o arsenal de dentes perolados, os grandes olhos cor da noite, os peitos que amamentariam metade da África. Era bonita de dar medo.

Mal nos sentamos à mesa de jantar e o escritor começou a tossir feito tuberculoso e uma série de placas avermelhadas surgiram no seu rosto cor de vela. Marcela, minha mulher, tomara o cuidado de preencher os espaços vazios da estante com dezenas de livros que comprara pelos sebos da cidade; não queria parecer inculta diante da visita célebre; mas o escritor parecia não saber da existência dos livros de segunda, terceira, vigésima mão. Para ele, os livros iam direto pro céu depois de lidos, enquanto minha sala não passava dum medonho cemitério de impressões digitais; o suor, a gordura, as células epiteliais de cada leitor ainda ali, testemunhas eternas do seu amor - e posterior desamor - por aqueles livros.

Fomos pra copa, onde a mesa era menor. Não couberam as baixelas e travessas novas; ficaram só os pratos e talheres novos. Tudo comprado para impressioná-los. O escritor se recuperava aos poucos do fricote, enquanto Marcela bombardeava Joana com perguntas sobre as viagens dos dois ao redor do mundo. Mas o que eu mais temia ainda estava por vir.

- Sabe, - disse Marcela, dirigindo-se ao escritor - achei muito interessante a forma como você reescreve os clássicos nesse sistema de signos contemporâneos.

Ela tinha lido isso no Google.

O escritor, que até então havia se mantido calado, conteve a muito custo um sorriso de satisfação. Sentiu que era seu dever iniciar um extenso monólogo sobre este monstro disforme e infronteiriço que ele apelidava de "literatura". A voz, baixa e monótona, parecia mais um zunido. Falou dos círculos acadêmicos, da crítica, do mercado, das feiras, dos prêmios.... Será que os livros dele eram esse pé-no-saco? E se não eram, por que não desembestava a falar de algum puta assunto, um assunto realmente do cacete, digno de que alguém desembolse quarenta pilas num calhamaço de papel e jogue fora seu tempo livre debruçado sobre ele, tentando enxergar alguma merda de sentido nesse mundo?! Se alguém não consegue entreter uma plateia que cabe na mesinha de uma copa, deveria ter o direito de escrever um livro negado.

Os olhinhos de Marcela, entretanto, cintilavam em transe. Nem ouvia, apenas admirava aquela figura de um mundo inacessível. Marcela queria grandes questionamentos e verdades elevadas, queria uma vida, mas eu não tinha uma pra dar. Já o escritor era um Prometeu trazendo o fogo sagrado, um profeta anunciando a mensagem que ela não podia compreender e que, portanto, parecia sublimada e inaudita.

Fui ao banheiro e fiquei um tempo lá, jogando água fria na cara, tentando juntar fôlego para engolir outra dose daquele charlatanismo. Então Joana apareceu na porta.

- Quando ele começa a falar, não para mais. - disse ela.
- Tem quem goste.
- Tua mulher nem reparou que eu levantei.
- Quer usar o banheiro?
- Quero usar você.

Levantei-a pela bunda e a joguei sobre a pia de mármore. Ela estava de vestido curto e não foi preciso muito esforço para arrancar-lhe a calcinha. Penetrei-a com vigor. Minhas mãos se transformaram em garras e onde quer que pousassem apertavam forte e deixavam roxos e vermelhões e arrancavam gemidos baixinhos de Joana, que puxava os pelos da minha barba e segurava minha nuca tentando se equilibrar na ponta da pia.

- Forte! Forte! - ela dizia entre os dentes.

E a violência me possuiu e meti com força e fodi a literatura, fodi os críticos, as verdades elevadas, os sentidos inauditos, os prêmios, o Google, a cara chupada daquele toco de cera filhadaputa!

Gozamos.

- O que você tá fazendo com esse retardado? - perguntei, extenuado.
- Você não parou melhor que eu. - ela disse, roçando a cabeça no meu peito feito gata.

Refizemo-nos sem pressa. Ainda podíamos ouvir o zunido monótono da voz do escritor vindo da copa. Ele podia falar sobre aquilo até um cometa rasgar a Terra se ninguém o interrompesse. Reaparecemos juntos, sem nenhuma tentativa de disfarce. Por lá, ninguém nos deu bola.

- Vamos, amor. Tá tarde. - disse Joana.
- Como o tempo passou rápido. - ele respondeu, olhando o relógio.
- Nem fala. - acrescentei.

E foram embora.

Marcela estava radiante, fascinada, em pleno êxtase.

- Amor, - ela disse. - precisamos viajar, ler, expandir os horizontes!
- Claro, amor. Vamos sim. - respondi, com embargo na voz.

Acordei no meio da madrugada e não vi Marcela na cama. Eram quase quatro da manhã e a luz da sala estava acesa. Fui até lá e encontrei-a esparramada no sofá, roncando com um exemplar encardido de Os Irmãos Karamazov aberto sobre o peito. Guardei o livro na estante - estava na terceira página -, peguei-a no colo e levei-a de volta pra cama.

Número 98

Ela tinha voz de desejo incubado. Voz de quem se esconde atrás de um rosto angelical e reserva sua devassidão para os desconhecidos, os anônimos, os que não querem vê-la sob a máscara da beatitude. Nos esbarramos num bate-papo por telefone. Eu, desempregado, barrigudo e com um quê de depressão, recebi aquela vozinha espevitada como uma dádiva dos céus. Passava minhas tardes de pau duro, ouvindo ela narrar aventuras sexuais. Ela disse que tinha pai empresário e mãe estilista, que tinha copeiro, jardineiro, cozinheiro, motorista, dois huskies siberianos e que passou as últimas férias no Taiti. Eu disse que era desempregado, barrigudo e com um quê de depressão. Ela riu. Disse que tenho senso de humor.

Ménage a trois, quatre, cinq, six. Ela já fez de tudo, em todas as posições, em todos os orifícios. Transou com mulheres, veados, gigolôs, travestis e com um surdo-mudo que bateu à sua porta vendendo drops. Pagou boquete pro motorista com o pai no banco de trás, entretido no caderno de esportes. O próprio pai tentou comê-la, mas ela não topou por achar seu pinto muito pequeno, apesar de ter saído de lá. Flagrou a mãe em altas surubas na sala de estar. E se juntou a elas, sem cerimônias.

Eu ficava esparramado no sofá, bebendo vinho barato e curtindo aqueles contos-de-fada pornográficos. Não, ela não tinha nenhum talento pra inventar as tais estórias, mas aquela vozinha aguda me deixava de pau duro.

- Quando a gente vai se encontrar? - perguntei.
- Não tá bom desse jeito?
- Quando?
- E se você for psicopata?
- Quando?
- Terça?
- Não dá. Tenho entrevista de emprego.
- É terça ou nunca!
- Nunca.
- Já te contei que pratico pompoarismo?
- Já.
- Então, vai trocar isso por um empreguinho miserável?
- Quem te disse que é miserável?
- Então vai pra tua entrevista!
- Me dá o endereço.
- Rua tal, número 98.
- Me espera às cinco.

O empreguinho era mesmo miserável. Além do mais, entrevista de emprego eu descolava duas por mês. Mulher não. Tinha certeza que comendo a garota todos os meus problemas estariam resolvidos. A barriga era na certa algum tipo de prisão de sêmen: toda aquela porra entalada dentro de mim tinha que dar merda mais cedo ou mais tarde. Já o desemprego era um nítido problema de auto-confiança, porque os caras que fazem entrevistas de emprego lêem nos olhos do candidato há quanto tempo ele está sem comer ninguém. E a depressão, bem... Depressão é o cacete!

Mas eu precisava me sentir mais confiante, ainda que provisoriamente. Encontrei três livros empoeirados de Machado de Assis largados na estante e levei-os num sebo que tem lá perto de casa. O dono ficou maravilhado: eram edições clássicas, raríssimas, das primeiras editadas no Brasil. Me deu quinze reais. Saí de lá e entrei na lojinha de roupas que fica ao lado. Pequena, abafada e atulhada de caixas de papelão por todo canto. Parecia esquecida pelo tempo, nenhum traço do progresso humano dos últimos séculos, à exceção da lâmpada elétrica pendurada no teto, que iluminava parcialmente o rosto sepulcral da velha de cento e cinquenta anos que atendia no balcão.

- Quero uma sunga. - eu disse.
- Tamanho? - perguntou a velha com voz de além-túmulo.
- Médio. - respondi.
- Prazer, Nélio.
- Médio! - gritei.
- Claro, claro...
- Quero aquele outro modelo ali.
- Tipo shortinho?
- Caralho... É, tipo shortinho.
- Toma, meu filho.

Pus a sunga na frente da corpo pra ver como ficava.

- A senhora acha que vou ficar sensual nela? - perguntei.
- Com esse barrigão de verme? - e soltou uma gargalhada de bruxa maligna.
- Quanto custa essa merda?
- Quinze reais.
- Literatura é pano de bunda mesmo.

Larguei o dinheiro no balcão e fui embora. Nada abalaria minha auto-estima revigorada pela nova sunga-shortinho.

No dia marcado, saí de casa com bastante antecedência. Não queria me atrasar. Afinal, a guria podia ser mentirosa, mas com aquela imaginação pervertida alguma diversão nós teríamos. Cheguei na tal rua, número 98, lado par. Um casa baixa, a pintura estourada pelas infiltrações, um portãozinho corroído, um caminho de concreto rachado até a porta. Bati palmas. Um garotinho de oito anos apareceu.

- Chama lá tua irmã. - falei, fazendo voz de homem.
- Não tenho irmã.
- Tua mãe, que seja.
- Não tenho mãe.
- De alguma buceta você há de ter saído.
- Sou filho da vovó.

Que bonitinho. E lá veio a velha caindo as pedaços, cacarecando e rangendo feito um Fusca 68.

- O que você quer, seu maníaco? - disse a velha bruxa; eu já estava me acostumando com elas.
- Aqui é rua tal, número 98?
- Depende. O que você quer?
- Estou procurando uma garota chamada...
- Meu filho, se você não veio comprar baseado, é melhor se mandar ou leva tiro.

E dos fundos da casa surgiram dois capangas enormes. Saí correndo. Peguei o telefone.

- Sua vagabunda, você não mora na porra do 98!
- Moro sim.
- Então sai agora.
- Não tô em casa.
- Vagabunda!
- Aconteceu uma emergência. Não fica bravo comigo.
- Eu estou no 98! Só tem uma velha bruxa e dois gorilas vendendo maconha.
- Moro sim!

E desligou.

Lá estava eu, sozinho numa rua deserta, à procura de um personagem doentio, fruto da falta do que fazer vespertina de uma guria pirada. Onde o pau de um homem não o leva! Fui caminhando lentamente na direção do ponto de ônibus, tentando aplacar a vontade que me deu de cortá-lo fora. Reparei que a tal rua era feita só de casas e sobrados. Parecia rua do século dezenove ou coisa assim. Mas na rua de trás, quase como um obelisco fálico, havia um prédio residencial de uns vinte andares. Comecei a observar aquela enorme massa de concreto fincada entre as casinhas coloridas. Destoava, era feio. Lá pelo quinto andar, um vulto que estava na sacada correu para dentro do apartamento. Foi rápido, mas deu pra ver claramente que se tratava de uma mulher... De uma mulher jovem... De uma mulher jovem que me observava. Filha da puta!

Fui correndo que nem louco para a rua de trás. Quando cheguei ao tal prédio, a surpresa: número 98. A louca me deu o número certo na rua errada. Na certa queria me ver sem correr nenhum risco. Pensei em chamar o porteiro e perguntar pelo nome dela, mas quem garante que ela me deu o nome certo? Atravessei a rua, entrei numa lanchonete bem limpinha que tinha em frente, daquelas com laranjas e melões pendurados na parede, e pedi uma cerveja. Bebi lentamente. Uma, duas, três cervejas... A garota desceu. Quer dizer, era bem parecida com o vulto que vi correr da sacada. Joguei uma nota de dez sobre o balcão e fui atrás dela.

Passava das seis. A noite já havia derrotado o dia. Fui seguindo a menina a uns dez passos de distância. Parecia ter seus dezoito. Vestia calça jeans e uma blusinha vermelha. Não era baixa, tinha cabelos castanhos escorridos até a cintura e uma bunda enorme. Andava serelepe, rebolando pra lá e pra cá.

Saquei o celular, liguei pra ela.

- Oi, amorzinho! - ela disse.

Ah, aquela vozinha aguda, espivitada, inconfundível! Apertei o passo, cheguei perto, puxei-a pelo braço:

- Oi, amorzinho. - eu disse.

A menina entrou em transe, começou a se tremer toda, fora de controle. Chorava, implorava, berrava. O rostinho angelical em puro pavor. Parecia diante da morte, do mal, do diabo, do fim.

- Me deixa! Eu não fiz nada! - ela gritava, as lágrimas escorrendo aos rios.
- Ei, calma. Escuta...
- Eu sou virgem! Me solta!

Conseguiu se desvencilhar dos meus braços e caiu no chão numa convulsão histérica. Parece ter batido com  a cabeça em alguma coisa. E parou. Sorte minha daquelas ruas serem desertas. Quem acreditaria em mim quando eu dissesse que aquele rostinho virginal dera sentido às minhas tardes vazias com a devassidão que guardava nas cisternas da alma? Deixei-a lá, estendida no chão e corri o quanto pude.

Minhas tardes voltaram a ser o que eram antes: sofá, vinho barato e um quê de depressão. A vida às vezes pode ser uma merda. E a merda sempre pode feder mais.

Véus do Tempo

O clima pesou no boteco. Os crentes com suas bíblias e folhetos evangelísticos não arredavam pé. Os bebuns já estavam prestes a perder as estribeiras. Versículos sagrados e palavrões disputavam cada milímetro cúbico de ar. Todos suavam. Num canto, sentado, com uma enorme barriga caindo sobre as coxas, garrafa de pinga à mesa, um senhor de barba grisalha assistia ao furdunço. Tinha um quê de volúpia no rosto. Observava fixamente uma senhora baixinha, na casa dos cinquenta, de cabelo armado com laquê, trajando saia e casaquinho abotoado, com um broche dourado em forma de pombo espetado na lapela. Era quem coordenava o grupo. Esbanjava confiança, gesticulava, contemporizava, sorria. A mais xingada e a que mais sorria. Um sorriso franco, doce, que revelava suas fileiras de dentes amarelados pelo tempo.

- Morena! - disse o barbudo, com uma voz grave, imponente, que parecia não sair de sua boca, como que dublado por alguém.

A senhora baixinha estancou. Parecia que haviam lhe puxado da tomada. O bate-boca cessou. Os crentes passaram a observá-la com curiosidade, tentando descobrir se haveria alguma mudança de estratégia no embate. Os bebuns também se calaram. Queriam saber o que de tão horrendo havia sido dito, já que esgotaram seu repertório de xingamentos e nada tirara o sorriso daquela mulher. A senhora aproximou-se lentamente do homem barbudo enquanto a expectativa enchia o lugar de silêncio. O homem barbudo se levantou meio cambaleante e a mulher o abraçou calorosamente.

- Aleluia! Aleluia! - gritavam os crentes.

O homem barbudo tomou o rosto da mulher entre as mãos e afundou-se nele, num beijo fumegante.

- Caralho, mas que porra é essa? - perguntou um dos bêbados.

Um crente alto, mulato e corpulento, de camisa social fechada nos punhos e no pescoço, saiu dentre a multidão e separou os dois com rispidez, jogando o barbudo contra a parede e postando-se diante dele, como quem espera qualquer movimento para desferir o golpe fatal.

- Eliezer, calma! Eu conheço. - disse a senhora.

Os dois saíram do bar e sentaram-se nuns banquinhos da praça que ficava em frente ao botequim. Eliezer e os outros crentes sentaram num grupo de banquinhos mais afastado e estudavam atentamente cada movimento dos dois.

- Esses putos vão ficar ali? - perguntou o barbudo.
- Eliezer é meu marido. - respondeu a senhora baixinha.

O barbudo caiu na gargalhada.

- Sabia que tu ia casar, morena. Eu sabia.
- Demorei anos até...
- Teve filho?
- Dois. Bianca e Maikon.
- Porra! Meu filho nunca se chamaria Maikon.
- Foi Eliezer que escolheu.

Os bebuns vieram para a porta do botequim. Apontavam, gesticulavam e gritavam:

- Olha o corno lá! - e apontavam para Eliezer. - Cansou de pregar, chifrudo?

Eliezer bufava, o suor lhe encharcava o colarinho da camisa. Levantou seu corpanzil do banquinho onde estava e caminhou em passos épicos na direção da mulher. Antes que dissesse palavra, foi interrompido.

- Esse é o Almir. Lembra? - disse a senhora.

Eliezer hesitou. Olhou desconfiado. Parecia diante de um personagem de ficção. Almir limitou-se a dar mais uma golada na garrafa de pinga.

- Almir... Pensei que já tivessem te matado. - disse Eliezer.
- Deus bem que tentou.
- Talvez faltasse só o instrumento.
- Tá falando contigo, morena.
- Pára de chamar minha mulher de morena. O nome dela é Laura! Laura! Tá me entendendo?
- Calma, Eliezer. - interveio Laura - Ele está bêbado. Não tá vendo?
- Você tem dez minutos. - disse Eliezer, afastando-se.

Almir deu outra golada na garrafa. Laura o observava com olhar maternal.

- Porra, você acabou comigo. - disse Almir.
- Mas tentei de tudo pra salvar tua alma.
- Minha salvação era você.
- Almir!
- Não vem com esse papo de mulher casada.
- Tentei ou não tentei?
- Egoísta! Vocês são todos uns egoístas.

Silêncio, à exceção de uma brisa que assobiou sobre a praça. Almir observava os efeitos do tempo no rosto de Laura. As bochechas antes rijas agora estavam como que derretendo. Os olhos pareciam tristonhos, com pequenos sulcos se formando nas pálpebras, e a boca de lábios pontudos e ariscos, um convite aviltante ao pecado, havia se transformado numa rosa murcha, sem cor. A vitalidade pulsante da alma de Laura ainda estava lá, patente, perene, mas encoberta pelos pesados véus do tempo.

- Sabe, - disse Laura, distante, pensativa, apertando os olhinho sulcados - segui aquilo que eu acreditava. Mas às vezes me pergunto, mesmo assim, se foi o certo.
- O certo às vezes é seco, amargo.
- Amargo como a morte.
- Não chora, vai.

Eliezer apareceu novamente e pegou Laura pelo braço.

- Vambora, anda. - disse.
- Olha quanto bêbado tem ali pra tu pregar. - intrometeu-se Almir. - Não enche a porra do saco!

Buf! Foi um soco de mão fechada bem no meio do rosto. O punho de Eliezer era uma grande massa marrom, calejada e disforme. Almir caiu de costas no chão e ali ficou, com o rosto banhado em sangue. Os bêbados do outro lado da rua se alvoroçaram. Parecia gol do Flamengo.

- O corno se revoltou! Êeeeee! Uhuuuu! - gritavam.

Os outros crentes abandonaram seus banquinhos e correram à toda. Os homens chegaram num pulo e trataram de cercar Eliezer. As irmãs corriam como podiam, batendo as perninhas dentro dos saiões e arrastando as sandalinhas na terra.

- Se controla, vaso de Deus. Olha o testemunho! - disse um dos homens.

Eliezer tentava se desvencilhar da confusão que se formou à sua volta, mas não conseguia. Havia crentes por todos os lados, uns repetindo palavras de consolo, outros de repreensão, mas todos falando ao mesmo tempo, sem que se pudesse entender palavra. Quanto mais Eliezer se agitava na tentativa de escapar, mais lhe seguravam. Era um besouro caído num formigueiro.

Encoberta pelo tumulto, Laura, de joelhos no chão de terra batida, sustentava o tronco de Almir entre os braços, numa pietá de beleza inefável e maldita.

Papo de Mulher

- Homem gosta de ouvir sacanagem no pé do ouvido!
- De que tipo?
- Me come até o talo!
- E mais o quê?
- Só conheço essa.

E as duas caminhavam pela rua, compartilhando o restinho do último cigarro.

- Mas é pra dizer com carinho?
- Ele tem que achar que você perdeu o controle.
- E se perdeu?
- Você para de fingir.

E o cigarro acabou. E elas jogaram no chão da rua, estando a poucos passos da lixeira.

- E se ele me achar uma vadia?
- O sonho de todo é ter uma santinha vadia.
- Santinha ele acha que eu sou.
- Metade do caminho.

Um velho decrépito passou por elas e olhou com cara de lobo babão.

- Homem é um bicho complicado.
- Acho tão simples.
- Simples que chega assusta.
- Queria ter nascido homem.

Pediram um cigarro ao velho decrépito. O velho deu dois. E acendeu.

- Tive um ex que só gozava se eu gemesse.
- Ai, que saco!
- Gravei meus gemidos e dei pra ele. Foram duas semanas de paz.
- E depois?
- Ele terminou. Tinha tudo que precisava.

O velho decrépito tentava alcançá-las, mas eram rápidas demais para ele.

- Já traiu?
- Já.
- É melhor?
- É.
- Uhm...

Sentaram num banco de praça. Cuspiam a fumaça no ar em forma de círculos.

- Acho que tô amando.
- Ai, que legal!
- Será que ele me ama?
- Faz diferença?

Os cigarros chegaram ao fim. Jogaram no chão e pisaram sobre eles.

- Será que é pra sempre?
- Pouco sexo pra uma vida inteira.
- Mas homem só pensa em sexo!
- Se todo ele fosse com você...

O velho decrépito quase conseguiu alcançá-las, mas foi interceptado por uma velha que lhe dizia poucas e boas.

- Melhor mudar de assunto.
- Porquê?
- Vão pensar que somos homens.
- É verdade.

Do Tamanho do Mundo

Felipe sentia nos lábios o gosto do talento. Desde criança achava que seus dez em português eram prenúncio de algo maior. Gostava de ler grandes autores e de escrever poesias em seu blog enquanto os colegas torciam por seus times no Maracanã e enrabavam vadias no banco de trás de seus carros. Acompanhava diariamente as estatísticas de acesso de suas poesias e verificava constantemente a chegada de novos comentários, que eram sempre elogiosos, empolgados, bons de se ler. Na faculdade, conseguiu um leitor fiel para seus textos: Danilo, um magrelo, alto, com cara de manga chupada e que falava pelos cotovelos. Era chato até cansar, mas gostava de suas poesias.

Felipe entrou no banheiro da faculdade. Haviam dois mictórios. Num deles mijava Paulão, colega de classe barbudo, de voz grave e pouco dado a sorrisos. Felipe parou diante do outro mictório, abriu a braguilha e começou a mijar.

- Li algumas de suas poesias. - disse Paulão.
- Sério, cara? E aí? - perguntou Felipe.
- Achei uma merda.

A frase parecia ter sido dita num megafone. Felipe sentiu a pele queimar.

- Você não faz parte do meu público. - disse.
- O público da merda é a latrina. - finalizou Paulão, balançando o pau e virando as costas.

A urina de Felipe parou de sair. Era a primeira vez que falavam assim do que escrevia. Ficou ali, estático, de pau na mão, olhando para o mármore do banheiro.

Passou a parir poesias como quem tem os dias contados. Tudo virava poesia: cocô de cachorro na calçada, pelo de barba na pia do banheiro, zunido de lâmpada fluorescente, reflexo de sol em vidro de carro. Escrevia com fúria, com desejo, forçando as emoções como cortasse a própria carne.

- O que tá havendo contigo? - perguntou Danilo.
- Nada.
- Você mudou seu jeito de escrever.
- Mudei não.
- Tá escrevendo em maior quantidade também.
- Nada que preste.
- Mostrei algumas poesias suas pra Carina. Ela adorou.

Felipe tentou conter o sorriso mas não conseguiu. Sempre idealizou a imagem do artista resignado que exerce seus dons por uma espécie de obrigação divina. Nada de glamour, glórias e flashes. Mas o sorriso que ganhou seus lábios veio com uma avalanche de prazer. Tentava falar, mas sorria.

- Carina... Carina? - perguntou Felipe.
- É, a professora de filosofia.
- Bonita ela, né?
- Bonito sou eu, ela é maravilhosa!
- E ela gosta de poesia?
- Da sua, gosta.

Não demorou muito para que Carina viesse procurá-lo. Era uma loira oxigenada bem pra lá dos trinta, mas com um corpo que tirava todos os alunos do prumo. O número de espectadores em suas aulas sempre variava de acordo com o tamanho do decote que usava. Não que fossem vulgares, mas seus seios eram tão generosos que qualquer cortezinho na blusa se tornava um espetáculo da natureza.

- Sua poesia tem uma métrica bacana, sabe? - disse Carina.
- Você é a primeira a reparar.
- Já pensou em publicar?
- Não.
- Devia.

Publicar. Ser lido. Reconhecido. Talvez realmente, efetivamente, tivesse algum talento. Era questão de tempo.

- Meu ex-marido tem uma revista independente.
- Revista?
- Publica umas matérias, contos, poesias... Mas só escritor independente. É ele quem seleciona.

Finalmente as engrenagens do universo começavam a girar. Seus dez em português não podiam ser em vão.

Telefonou no dia seguinte para Nelson, o ex-marido de Carina.

- Então, eu escrevo poesias. - disse Felipe ao telefone.
- Hum...
- Como eu faço pra te mostrar?
- Vamos beber.
- Hã?
- Beber, cacete. Vamos beber!

Encontraram-se num boteco fétido na Lapa. Ali perto haviam bares sofisticados que tocavam samba tipo exportação para gringos perfumados, mas Nelson preferiu sentar debaixo dos arcos, em meio ao cheiro cáustico de camadas sobrepostas de uréia ressequida. Sentaram na calçada, entre maconheiros, putas e travestis.

- É daqui que vem a poesia - berrou Nelson - do ventre da humanidade! - e virou a garrafa de uísque na boca.

Felipe não sabia como se comportar diante daquela figura grosseira. Se perguntava o que Carina, a deliciosa professorinha de filosofia, havia visto nele.

- Já comeu travesti? - perguntou Nelson.
- Não!
- É bom... São menos frescos. Toma uma gole.
- Não bebo uísque.
- Bebe o quê?
- Vinho.
- Veadagem, hein? Compra uma garrafa ali então.

Felipe se levantou e foi até o boteco em frente. Um gordo de cabeça chata e com a metade da barriga escapando por baixo da camisa surrada o atendeu. Felipe perguntou as marcas de vinhos disponíveis e o gordo soltou uma risada irônica. Só havia uma e Felipe nunca tinha ouvido falar dela. Comprou o vinho e voltou para junto de Nelson, que a essa altura já havia acabado com metade da sua garrafa.

- Não come traveco e não bebe uísque. O que você faz então? - perguntou Nelson.
- Escrevo poesia.
- Sobre o quê?
- A vida.
- A vida é um cú. Do tamanho do mundo!

Felipe queria ir embora daquele lugar. Foi quando passou um travesti num salto-plataforma multicolorido. Era negro, tinha batom vermelho capeta nos lábios e uma peruca loura de fios desgrenhados na cabeça. Suava e fedia como um cão.

- Senta aqui, docinho. - disse Nelson, puxando o travesti que caiu em seu colo. Suas coxas grandes, azuladas, com pelos que despontavam aqui e ali, revelavam a musculatura masculina. - Preciso que você ensine alguns truques pra esse meu amiguinho poeta.
- Nelson, você está passando dos limites. - disse Felipe.
- A poesia não tem limites, baby.
- E o que você entende de poesia?
- Mais do que você entende de trocar suas próprias fraldas, seu merdinha!

Felipe levantou e começou a andar.

- Garoto! - chamou Nelson.
- Que foi?
- Vai beber essa merda?
- Não.
- Então deixa aqui. Meu uísque tá acabando.

Felipe voltou, entregou-lhe a garrafa de vinho e foi embora.

No dia seguinte, ao entrar na sala de aula, se surpreendeu ao ser alvo de todos os olhores. Na lousa, uma poesia sua escrita com caneta marcadora.

- Palmas pro poeta! - gritou Danilo.

Enquanto meia-dúzia acompanhou Danilo nas palmas, o restante permaneceu olhando a cena num misto de curiosidade e sarcasmo.

- Conseguiu publicar a merda das tuas poesias, cara? - perguntou um aluno no meio sala.
- Se o que você escreve é isso aí que tá no quadro, tomara que não tenha conseguido - disse outro.
- Ai, gente. Quer parar? Eu gostei. - disse uma menina do canto.

E a sala converteu-se num único e caótico debate sobre as poesias de Felipe. Todos falavam ao mesmo tempo, uns defendendo, outros atacando. Ninguém ali tinha grandes interesses por poesia, mas por polêmica sim. Danilo era o mais efusivo. Gritava e colocava o dedo na cara dos opositores. Paulão permanecia sentado, quieto, observando tudo ao redor com o queixo cabeludo apoiado sobre as mãos. De repente levantou, caminhou na direção de Danilo e desferiu-lhe um soco na boca do estômago. Silêncio súbito e absoluto. A única coisa que podia se ouvir eram os gemidos fracos de Danilo arqueado no chão. Paulão olhou na direção de Felipe, que continuava estático na mesma posição desde que entrara.

- E você?! - perguntou Paulão.

Felipe ergueu as mãos espalmadas como quem diz: "Não fiz nada, sou frouxo, não precisa me matar".

- Apaga essa merda do quadro! - ordenou.

Felipe caminhou até a lousa num passo lento, resignado, de viúva que segue cortejo fúnebre. Tomou o apagador e passou-o sobre aquelas frases que conhecia tão bem. Lembrava da escolha de cada palavra, preposição, vírgula, quebra de linha. Podia escrevê-las de cabeça. Podia escrever um livro sobre cada uma delas. Mas apagou. E nunca mais voltou a escrever.

Quero Ganhar Educação Profissionalizante Gratuita e de Qualidade

Meu trabalho era ficar sentado na frente de um computador e recepcionar cretinos fracassados sofrendo do último resfolegar de esperança capitalista. O chamariz era um cartaz que o nosso curso espalhou pela cidade com a foto de um cara branco, bem vestido e com sorriso cepacol, oferecendo curso profissionalizante gratuito. Mas não bastava vir até aqui e pedir o curso. No cartaz dizia que era preciso repetir a frase: "Quero Ganhar Educação Profissionalizante Gratuita e de Qualidade". Ou seja, além do cabra não passar de um fodido procurando salvação em cartazes publicitários, ainda tinha que desperdiçar sua última gota de dignidade afirmando em alto e bom som que não podia pagar pelo curso.

Mas até que a promoção veio em boa hora. As coisas andavam meio monótonas e eu acabava passando a maior parte do meu dia escrevendo estórias de sacanagem. Sim, escrevia estórias bem sacanas e enviava por e-mail para minhas colegas de trabalho, para que elas pensassem que eu era bom de cama e resolvessem me dar. Nunca funcionou, mas soube que a Carlinha do administrativo se masturbou com minha estória sobre uma suruba no circo, envolvendo anões, macacos e mulheres barbadas. Foi o máximo que consegui. Quando perguntei se ela queria sair comigo, a desgraçada respondeu que entre dar pra mim e pro anão do circo, preferia o anão.

Só sei que depois desses cartazes o curso começou a ficar movimentado. De cinco em cinco minutos entrava alguém e recitava a maldita frase. Aí eu pegava um formulário de quatro longas páginas, que perguntava de tudo, até se o cara tinha oxiúrus, e dava para o fracassado em questão preencher. Mas como eu só tirava seiscentas pilas naquela merda de emprego e a maior promoção que eu poderia conseguir era para o administrativo, onde eu ganharia cem pilas a mais e passaria o dia digitando aqueles malditos formulários pra saber quem tinha oxiúrus, resolvi me divertir um pouco. O cartaz dizia pra pessoa repetir a tal frase, mas não fomos orientados pela direção a exigir isso. Só que os cretinos que apareciam ali eram tão derrotados que arriariam as calças se eu mandasse. Mal sabiam que o tal curso gratuito era uma introdução pro curso de verdade, que era - adivinha! - pago.

Lá pelo meio da tarde, entrou um senhor grisalho de roupa social, aparência digna e ar respeitoso.

- Bom dia, meu jovem. Estou interessado naquele curso gratuito que foi anunciado.
- E a frase?
- Que frase?
- Tem que dizer a frase.
- Do anúncio? Desculpe, mas não me lembro.
- Lá diz que tem que repetir a frase.
- E qual é?
- Não posso dizer.
- Mas que diferença faz? É só uma frase.
- Regras são regras.
- Eu vi o anúncio num outdoor, mas não me lembro aonde.
- Tem um na Monsenhor Félix.
- Tão longe?
- E nesse sol, né?

Vi nos olhos dele o desejo primitivo de mandar eu me foder, mas não mandou. Saiu porta afora.

Pouco depois, apareceu uma gorda de uns vinte e poucos anos. Nossa! Vinte anos e gorda. Os melhores anos de uma mulher soterrados debaixo de toneladas de gordura. Fiquei me perguntando se alguém a comia. Duvido. Na melhor das hipóteses vai se casar aos trinta, virgem, com um cara que enjoou de comer garotas magrelas e resolveu comprar uma casa financiada e um cachorro de petshop. Para uma vida dessas, nada melhor que uma esposa gorda.

- Quero Ganhar Educação de Qualidade Gratuita e Profissionalizante.
- Tá errado.
- O que tá errado?
- A frase. Não é assim.
- Como não? Eu decorei!
- Escuto essa frase mil vezes por dia. Sou capaz de dizê-la tendo um orgasmo.
- E como é?
- Pra ter um orgasmo? Emagrece.
- Como é A FRASE!?
- Não posso dizer.
- Já sei! Quero Ganhar Educação Profissionalizante Gratuita e de Qualidade.
- Agora sim.
- Onde eu preencho?
- Já era. É uma chance só.
- Não diz isso no anúncio!
- Minha querida, numa boa, chega aqui pertinho de mim... Pra que nós vamos gastar dinheiro profissionalizando alguém que não consegue decorar uma frase de oito palavras?

Saiu batendo a porta. Incrível como ninguém mandava eu me fuder. Meia-hora depois o senhor grisalho voltou. Tinha a testa, o pescoço e a camisa encharcadas de suor.

- O senhor está fedendo. - eu disse.
- Quero Ganhar Educação Profissionalizante Gratuita e de Qualidade.
- Preenche isso aqui.

Ele ficou lá, escrevendo e bufando e pingando e empesteando a sala.

- Nunca conheci alguém tão desprezível quanto o senhor. - ele disse.
- Sabe, acho que vou usar sua ficha de cadastro pra limpar a minha bunda. - eu disse. E me levantei.
- O senhor... O senhor me desculpe.
- E não é que meu deu vontade de ir ao banheiro? - e ergui a ficha dele no ar.
- O que mais o senhor quer? Que eu beije seus pés? Eu beijo! Eu beijo!
- Tudo bem. Pode ir. Vou entregar sua ficha.

O homem continuou ali, parado, me olhando.

- Pode confiar, caralho! Eu tô falando.

O homem deu uma dúzia de passos vagarosos para trás, sem tirar os olhos da ficha, que eu mantinha suspensa no ar, até finalmente cruzar a porta, de costas. Assim que sumiu, rasguei a ficha e joguei no lixo. Saibam que isso foi um ato de respeito.

Dias depois eu estava empolgado com minha nova estória sobre russas peitudas e americanos retardados que se encontravam numa estação espacial e faziam suruba em gravidade zero. A Carlinha do administrativo ia se amarrar! Eram quase oito da noite e eu estava sozinho no curso. O gerente tinha saído mais cedo e pedido para eu fechar tudo. Faltava pouco para eu terminar mais uma obra-prima da putaria literária bagaceira. Bem na hora que a porra ia flutuar no espaço, entraram duas garotas correndo pela porta, saltitando e sorrindo feito gazelas no cio. Com sorte tinham seus dezoito. Queimadinhas de sol, cabelinhos longos, calças apertadinhas, topzinhos coloridos tensionando os seios recém inflados pela mamãe-natureza.

- Fechou? - perguntou a mais gostosa.
- Fechou. - respondi, sem olhar pra cara dela.
- A gente veio se cadastrar naquele curso gratuito. - disse a menos gostosa.
- E a frase?
- Eu não disse que precisava da frase? Eu disse! - disse a menos gostosa à mais gostosa. - Vamos ter que voltar amanhã.
- Hoje era o último dia da promoção. - eu disse, mas era mentira, claro.
- Ai, meu pai vai me matar! - disse a mais gostosa - Ele passou o mês inteiro mandando pra eu vir aqui. Sério. Ele vai me matar!
- O meu também. - disse a menos gostosa.
- Nesse caso, acho melhor vocês se refugiarem lá em casa. - eu disse.

Elas soltaram uma risadinha de mamãe-quero-ser-puta.

- Então, - falou a menos gostosa (que a essa altura também já era gostosa pra caralho, ou era o sangue que me faltava no cérebro por estar indo aos litros rumo aos países baixos) - você tem como inscrever a gente, assim, tipo, se você quiser, né?
- Mas por que eu ia querer um troço desses?

Bem, o resto vocês podem imaginar. Não, não podem! Eu levei as duas pra sala do chefe. E garanto que não tem coisa melhor nesse mundo que comer duas molecas safadas na sala do seu chefe. Melhor que gravidade zero, melhor que suruba no circo. E elas ACABARAM comigo. Eram loucas, insaciáveis. Bocas, pernas, mãos e línguas me derrotando a cada instante. Num dado momento, as duas desistiram de mim e ficaram lá, se pegando entre elas, enquanto eu, jogado no canto, sugado, extenuado, seco até o talo, só gemia e pedia clemência.

Alguns dias depois, o chefe me chamou na sala dele. Sempre que ele chamava alguém na sala dele era pra mandar embora. Não tinha erro.

- Seremos processados por duas garotas que afirmam ter sido coagidas a fazer sexo em troca do curso gratuito.
- E?
- Você fez sexo com elas?
- Sim.
- E diz isso com essa cara deslavada?!
- O senhor também comeria.
- Eu sou pai de família! Veja lá como fala!

Eu não conseguia ficar nervoso nem nada. Ele estava sentado na mesma cadeira que eu quando as duas rebolaram em cima de mim com suas bundinhas queimadas de sol. Na mesa onde ele repousava os cotovelos, as duas tinham se lambido feito loucas. Aquela sala só me trazia boas recordações.

- Você nos deve um pedido público de desculpas! - ele gritou. - Meu telefone não para de tocar! São dezenas de acusações de constrangimento, humilhação e o diabo.
- Eu vou ser mandado embora?
- Mas o que você acha? - ele disse, a voz esganiçada, o ar quase acabando. Ele tinha nos olhos o mesmo brilho selvagem do senhor grisalho. Ele estava quase estourando as hemorróidas de tanto ódio.
- Então enfie suas desculpas no rabo!

Levantei e saí. Depois que cruzei a porta, ouvi berros e barulho de coisas sendo jogadas contra a parede e vidros se quebrando.

Na semana seguinte, havia uma página inteira de jornal tomada por um comunicado: os ofendidos receberiam bolsas de cem por cento no curso que bem escolhessem. A Carlinha do administrativo me contou que depois desse comunicado apareceu tanta gente reclamando que eu teria comido por volta de 19 meninas sob coação, feito 8 surubas na sala do chefe, discriminado 21 negros, xingado 13 idosos e agredido 3 deficientes físicos. Fora a gorda ofendida, que nunca se manifestou. O dono do curso achou melhor fechar as portas. Todos foram demitidos e agora querem me matar. Com exceção da Carlinha do administrativo, que adorou a ideia de trepar com um louco, maníaco e depravado. E que ninguém venha desmentir meu currículo.

A Suíte Presidencial

- Não volto mais pra casa! - ela gritou. E desligou o telefone.

Estava no último banco do ônibus, a mochila no colo. Já passava dos vinte, mas quem a visse não daria mais do que quinze. Observou o próprio reflexo no vidro da janela, a expressão enfurecida.

- Merda! - disse para si - Queria chorar.

Chegou por volta da meia-noite. O ponto final estava deserto, apenas alguns poucos funcionários sonolentos. Perguntou onde poderia encontrar um lugar pra passar a noite. O motorista lhe indicou um hotelzinho a duas quadras de distância.

- Lá só vai puta, mas é o único que eu conheço. Você é puta, minha filha?
- Não.
- Que pena.

Agradeceu e rumou pra lá. Chegou a um sobrado de fachada enegrecida onde uma placa de madeira  anunciava a hospedaria em letras mal pintadas. Bateu na porta quase podre, que só foi aberta depois de algum tempo por um senhor baixo, magro, de cabelos ralos e brancos, que pela expressão havia sido acordado a contra-gosto pelas batidas.

- O que você quer, minha filha?
- Um quarto.

O velho se esforçou para abrir um pouco mais os olhos que ainda se acostumavam com a luz do poste. Percorreu a moça de alto a baixo.

- Você não tem cara de puta.
- Eu não sou.
- Aqui só vem puta, minha filha.

O velho abriu a porta, que gemeu, e os dois entraram. A recepção não passava de um balcão espremido entre a parede e a escadaria íngreme. O lugar inteiro parecia ter mal hálito.

- Você tem dinheiro, minha filha?
- Tenho.
- Muito ou pouco?
- Pra isso aqui, - disse, olhando em volta - acho que muito.
- Vou te levar pra suíte presidencial.

Subiram dois lances de escada e andaram por um um corredor longo e mal iluminado. O carpete era sujo, havia guimbas de cigarro por todos os cantos. Só era possível distinguir a suíte presidencial pela distância maior de sua porta para as demais. Era porta, porta, porta, não-porta, suíte presidencial. Além disso, a porta presidencial era de uma imitação de mogno, enquanto as outras não passavam de um branco encardido.

- Essa aqui só é usada quando vem político, artista... - disse o velho, orgulhoso, enquanto forçava a chave na fechadura teimosa.

Ao entrarem, deram com uma gorda de meia-idade tombada na cama, trajando um hobby que imitava pele de onça, roncando feito um anjo glutão. O velho, sem cerimônia, como matasse um mosquito, deu-lhe um tapa de mão cheia em plena nádega direita, que ecoou por todo o corredor.

- Levanta, sua porca! - gritou o velho - Já te falei pra não dormir aqui. Já falei. Na presidencial não!

A mulher levantou e, mecanicamente, recolheu o resto de seus trajes que estavam pelo chão e saiu porta afora, sem levantar os olhos.

- É a Diana, coitada. - explicou docilmente o velho - Descansando antes de pegar no batente. É o soninho da beleza. Hé-hé.
- Só troca o lençol, por favor.
- Tá com fome, minha filha?
- Morrendo. Nem tinha reparado.
- Tem um bar na próxima esquina. É onde as meninas pegam programa. Vai lá enquanto eu limpo essa zona.  Come um sanduíche. Põe na conta do Seu Gerânio.

Desceu as escadas, que pareciam ainda mais escuras que antes, saiu do hotel e passou a caminhar pela rua praticamente deserta. Só se via uma mulher que caminhava à sua frente. Era Diana, sem dúvida, só que agora trajando um vestido de veludo vinho bem apertado e botas de couro pretas que iam até perto do joelho. Caminharam uma diante da outra por todo um quarteirão, quando Diana achou que estava sendo seguida.

- Qual é a sua, hein!? - gritou Diana. - Já me expulsou do quarto. Quer mais o quê?
- Estou indo pro bar que tem ali.
- Roubar meus clientes!
- Eu não sou puta.
- Num hotel de putas, indo pra um bar de putas.
- Camila. - disse, estendendo a mão.

Diana não respondeu. Deus as costas e pô-se a caminhar. Camila apertou o passo e emparelhou com ela, que aos poucos pareceu aceitar a companhia da outra.

- Seu Gerânio disse pra eu beber na conta dele. - disse Camila.
- Faz tempo que eu não tomo um porre.
- Será que a gente descola uns Bloody Mary por lá?
- Minha linda, nada se compara a um porre de cachaça.

No bar, um pagode brega tocava no último volume. O ambiente era pequeno e uma luz avermelhada banhava tudo. Não havia pista de dança, apenas dezenas de mesas amontoadas, todas lotadas. Era difícil entender como as pessoas chegavam e saíam das mesas, tão juntas que eram umas das outras. Só haviam duas classes de pessoas: homens e putas.

- Essa aqui - disse Diana ao balconista, apontando para Camila - hoje tá na conta do Gerânio!
- Tô cansado das tuas conversinhas, Diana. - respondeu o balconista.
- Não vou gastar meu latim com você. Liga direto pro velho!

No minuto seguinte, estavam degustando uma pinga lancinante. Camila deu uma boa golada e quase caiu para trás. Diana gargalhou.

- Cuidado, pituquinha. Isso é bebida de adulto - brincou.
- Mais uma! - pediu Camila com um tapa no balcão, depois de secar o copo num trago.
- Se eu me arrumar por aqui não vai ter ninguém pra te levar de volta pro hotel.
- Ah, isso eu duvido.

Não demorou para que um homem se aproximasse. Alto, parrudo, pescoço grosso, pele caramelada e um grande vão entre dentes da frente.

- Quem é a bonequinha? - perguntou o homem, referindo-se a Camila.
- Debutante. - respondeu Diana.
- Pago o dobro.
- O dobro de quanto? - perguntou Camila.
- De trinta, ué?

Camila soltou uma gargalhada.

- Nem fodendo, seu merda! - respondeu.

Tudo que Camila viu foi a mão grotesca do homem erguendo-se no ar. Depois, breu e gosto de sangue na boca. Recobrou os sentidos no chão, jogada num canto do bar. Alguém havia lhe arrastado até ali. Olhou ao redor: todos bebiam, riam e cortejavam suas putas na mais perfeita paz. Ouviu uma gargalhada e olhando para cima viu os quadris dantescos de Diana sentada num banco. Levantou cambaleante e sentou-se ao lado dela. O homem parrudo estava sentado do outro lado.

- Serve uma pinga pra moça! - disse o homem - e traz um pano pra ela limpar a boca.

O balconista trouxe um copo de cachaça e um paninho encardido. Camila virou o copo na boca. Ardeu como o inferno. Ela gemeu.

- Nem fudendo... - repetiu o homem para si. E começou a gargalhar.

Diana também começou a rir. Camila tentou acompanhar, mas a boca doeu. Ficaram ali sentados, os três, rindo e bebendo até não se sabe que horas.

Camila acordou, ainda de olhos fechados, com duas dores ferozes lhe disputando: uma na cabeça - "Então isso é porre de cachaça?" - e outra na boca. Pediu a Deus para morrer ali mesmo. Que fosse direto pro inferno, mas duas dores era demais. Sentiu peles geladas por todos os lados. Abriu os olhos e percebeu que estava na cama da suíte presidencial, Diana de um lado e o homenzarrão do outro, nus. Um fedor imperioso enchia o quarto, uma mistura asquerosa de suor, álcool e mofo. Não conseguia se mover. Estava soterrada por braços flácidos e pernas recheadas de banha. Os dois roncavam como um coral suíno. Sentiu ânsia de vômito ao perceber que a vagina ardia. Quis matá-los a golpes de pá de lixo, desentupidor de pia ou coisa ainda menos glamurosa. Rastejou por entre os dois corpos inertes rumo ao hemisfério sul do colchão até conseguir descer da cama.

Ficou ali, de pé, nua, observando aquela pororoca do inferno. Riu. A boca doeu. Procurou alguma coisa ao redor até encontrar a capanga de couro do homem. Abriu e tirou exatos sessenta reais. Seu pagamento. Depois, pegou o telefone e discou um número de cabeça. Atenderam do outro lado.

- Agora sou uma puta. Você ainda me quer? Uma puta, entendeu? Tá, então tô voltando pra casa.

Corpo e Só

Dia 1

O metrô parou na estação, abarrotado. Era tanta gente espremida que algumas foram ejetadas quando as portas se abriram. Era o terceiro metrô que eu perdia.

Uma garota branquinha na casa dos vinte, os olhos vivos e bem feita de corpo, bufou pra mim com cara de desânimo. Para ela também seria o terceiro. A sirene anunciou o fechamento das portas. Ninguém tentou entrar. Uma muralha de corpos, metros e metros de espessura, bloqueava a entrada. Aquilo me revoltou. Me joguei contra aquela massa compacta de gente com todas as minhas forças. A violência, tanta e tão inesperada, criou um pequeno espaço, mínimo, porém suficiente, naquelas circunstâncias, para mim e para alguém pequeno como a garota branquinha. Ela me olhou, fiz que sim com a cabeça e ela veio. Ficou com metade do corpo pra fora, quase caiu quando as portas começaram a se fechar, mas passei meu braço em torno da cintura dela e a puxei pra junto de mim. As portas se fecharam. Ela virou o rosto, tentou disfarçar, mas vi que sorriu.

Dia 2

Ela tinha um nome, do qual não me lembro. Estudava administração. Sétimo período. Tinha carro. Tinha dois cachorros. Tinha noivo, mas terminou, ou meio que terminou, há pouco tempo. Não quis saber. Tinha meus próprios problemas. O chope gelado mantinha o papo correndo solto. Ela tinha um rostinho redondo, o nariz pontudo e delicado. Era magra, mas cheia de corpo. Os olhinhos pareciam sempre molhados, brilhantes.

- Mas e você? Me fala de você. - ela disse.
- Tanta coisa pra gente falar.
- Já falei tudo de mim.
- Só o que você queria que eu soubesse.
- Então pergunta... Pergunta o que você quiser.
- Uma música que te faz chorar.
- "Corpo e Só".
- Pronto, sei tudo sobre você. - eu disse, ela riu. - Agora vamos para um lugar mais aconchegante.
- A gente nem se conhece.
- Não vale a pena.
- Assim, no primeiro encontro.
- Não vai haver segundo.

O rostinho dela empalideceu. Os olhos brilharam tanto que eu achei que ela fosse chorar. Demorei a me acostumar, eles estavam sempre desse jeito.

- Melhor assim. - ela disse.

Pegou a bolsa e levantou. Mal tive tempo de largar uma nota de vinte sobre a mesa e correr atrás dela.

Ela fazia sexo com raiva, apesar do corpo delicado, da unha pintada de rosa, da tatuagem de flor na entrada do púbis. Por várias vezes tentei diminuir o ritmo da coisa, mas ela sempre acelerava, acelerava. Foi bom, mas acabou tão rápido. Ela se vestiu com pressa. De saída, me disse:

- Obrigada. Você me ajudou muito. - fechou a porta e se foi.

Não deixou telefone, e-mail, nada.

Dia 3

Eu sabia que mais dia menos dia nos esbarraríamos no metrô. Não demorou duas semanas. Ela sorriu ao me ver. O metrô parou, abarrotado, a muralha de gente, a massa compacta. Olhamos um pro outro e fomos tomar um chope.

- Meu ex me procurou. - ela disse. - Mandei praquele lugar.
- Viver sozinho não é fácil, garota.
- Sabe, eu ainda tava noiva quando a gente transou aquela vez. Tava infeliz, mas não tinha coragem de terminar.
- Coragem, às vezes, é insistir.
- Não estou te entendendo. Você quer que eu volte pra ele, é isso?
- Só amanhã de manhã.

O sexo foi calmo dessa vez. Horas e horas... Parecia aquela coisa tântrica. De vez em quando ela apertava os olhos e se arrepiava todinha. Era um belo espetáculo pra se apreciar. Decidimos que era uma ocasião oportuna para trocarmos telefones. Não é todo dia que se encontra sexo de qualidade dando sopa no metrô.

Dia 4

Meu telefone tocou. Eram sete da manhã. Ela tinha uma entrevista de emprego às nove e o carro não queria pegar de jeito nenhum. Não gostei da ideia, mas, ok, era uma entrevista de emprego, topei levá-la. Ela morava numa casa bacana de subúrbio. Veio toda bem vestida, maquiada, perfumada, cabelo solto. Se um dia eu fosse me casar, seria com uma mulher assim.

- É pra conseguir emprego ou marido?
- Estou bonita?
- Como esposa, eu bem que te contratava. – e ela riu.

Arranquei com o carro. Ela pediu para baixar o rádio e eu abaixei. Aí ela começou a falar, falar e falar. Eu só precisava reabastecê-la de tempos em tempos com um "aham" para que ela prosseguisse o monólogo sobre si mesma, suas ansiedades, seus problemas, seus planos, seus issos e seus aquilos.

Passamos em frente a uma estação do metrô. Parei o carro.

- Desce. - eu disse, no tom de quem não negocia.
- O quê?!
- Me liga quando quiser trepar.

Continuei olhando pra frente. Sabia que os olhos dela estavam brilhando. Não queria, não podia olhar para eles. Seria meu fim. Os carros de trás começaram a buzinar. Tudo que ouvi foi o barulho do cinto sendo desatado e o estrondo da porta batida com fúria.

Dia 5

Fui eu que liguei. Perguntei se ela queria passar no meu apartamento pra curtirmos um pouco. Ela veio. Calça jeans, rabo-de-cavalo, desodorante e só. Nada de maquiagem, nada de perfume. O sexo foi rápido e nervoso. Saí todo arranhado. Fomos comer alguma coisa depois. Ela estava muda.

- Olha, sei que fui um boçal. - eu disse.
- Não tenta se desculpar.
- Não chega a ser um pedido de desculpas. É uma explicação.
- Deixa. É melhor.
- Você é uma garota bacana, eu gosto de você e.
- O que você quer de mim, caralho? Anda! Fala!
- Nada. Vamos comer.

O bar tinha som ambiente. Começou a tocar "Corpo e Só". Fiquei quieto, ouvindo a letra.

Sem prender minha vida em você
Sem que a gente tenha que ser um


Olhei bem pra ela. Continuou comendo, impassível. Na saída, perguntei se ela queria dormir lá em casa. Estava tarde. Ela não se deu ao trabalho de responder. Entrou no primeiro táxi e partiu.

Dia 6

Meu telefone tocou:

- Quero trepar.

Mas não no meu apartamento. Preferiu um motelzinho de beira de estrada. A coisa voltou a ser tântrica. Eu já não sabia mais o que esperar daquela mulher.

- Obrigada. – ela disse. – Você me ensinou muito.

Silêncio. Ela parecia distante.

- Voltei com meu noivo. - disparou.
- Não estou entendendo mais nada.
- Me beija.

E a gente se beijou. Um beijo quente, forte.

- Que bom. – ela disse. – Foi assim que imaginei nosso último beijo.

Ela se levantou, catou as roupas jogadas pelo chão, o corpinho desenhando uma silhueta graciosa na meia-luz. Perdi o controle. Me desesperei.

- Troquei de telefone. - ela disse.
- Ainda temos o metrô.
- Não pego mais metrô. Me mudei. Estou morando com meu noivo.
- Pra que isso tudo?
- Não tem pra quê.
- Resolveu voltar pra vidinha de merda?
- Pelo menos eu tenho uma vidinha!
- De merda!
- Mas tenho!
- Fica comigo...

Ela segurou meu rosto entre as mãos, os olhinhos brilhavam. Eu sempre achava que ela ia chorar.

- Não estraga, vai. – ela disse. – Não estraga.

E se foi.

Ventre

- Não acredito! – eu disse.
- Alice... – ele meio que sussurrou e abriu um baita sorriso, um sorriso delicioso.
- O que você tá fazendo aqui?
- Eu estudo aqui.
- Há quanto tempo?!
- Meia-hora.

Marcelo... Estudamos juntos no segundo grau. Foi cursar engenharia por causa dos pais. Eu fui estudar letras.

- Largou a engenharia? – perguntei.
- Vou fazer Letras.
- E teu pai?!
- Pirou...
- Não dava pra esperar menos.
- Só não precisava vender meu carro.

O pai do Marcelo era engenheiro. O avô do Marcelo era engenheiro. O bisavô não sei ao certo, mas também devia ser.

- Chope depois da aula?
- Tô cheia de trabalho pra fazer.
- Um chopinho não tira pedaço, vai.
- Outro dia, quem sabe.

Eu estava doida para pular no pescoço dele, mas segurei a onda. Éramos maduros e bem-resolvidos. Bastava deixar as coisas seguirem seu curso natural e a velha paixão adolescente reacenderia.

Eu cursava o quinto período enquanto ele acabara de entrar no primeiro, mas todo intervalo entre as aulas a gente aproveitava pra conversar. O papo simplesmente fluía, era automático. Sempre foi assim.

- Viu o filme que passou ontem? – ele perguntou.
- Detesto.
- Você não tem vergonha não?
- Vai dizer que você entende aquilo?
- Não é pra entender, é pra sentir.
- Viadinho!

Ele riu. Ele sempre ria.

- Hoje sai nosso chope? – perguntou Marcelo.
- Sabe que nem estou bebendo mais? Dei uma parada boa mesmo.
- Saquei.

É. Acho que errei a mão.

Algum tempo depois ele me apresentou uma colega de turma chamada Roberta. Bonita, a desgraçada!

- Gostando do curso? – perguntei.
- Não sabia que era tão pesado. - ela disse. - E olha que eu sempre li de tudo.
- O que você costuma ler?
- Código da Vinci, Caçador de Pipas...

Marcelo e eu passamos a adolescência debruçados sobre Faulkner, Blake, Hemingway, Proust etc. Detestávamos top ten de livraria. Marcelo percebeu minha dificuldade.

- Marley e Eu? - Marcelo perguntou.
- Não li. É bom? – disse Roberta.
- Chorei do início ao fim.

Não teve jeito: caí na gargalhada. Roberta estava prontinha pra fechar o tempo, mas Marcelo abriu malandramente o zíper da calça enquanto eu ria. Quando ele olhou pra baixo e fingiu estar sem graça, Roberta achou que era dele que eu ria e estampou um sorrisinho sem graça.

Roberta passou a nos fazer companhia nos intervalos das aulas. Tinha um rostinho arredondado, nariz fino, corpinho pequeno e tudo, tudo muito bem distribuído. Marcelo estava começando a ficar encantado. O jeito como ele sorria pra ela era o jeito que sorria pra mim há anos atrás. Eu descia da aula voando até o pátio para tentar pegá-los ainda por perto, mas eles já estavam caminhando, distantes, entretidos em altos papos. Não demorou pra ele me dar a notícia.

- Tô namorando com a Roberta. – ele disse. - Tudo bem pra você?
- Porque não estaria?
- Só perguntando.
- Vai fundo. Ela é... linda.
- Nunca tive uma mulher tão bonita.
- Ah, quanta gentileza...
- Não banque a criança! Se eu falo assim, abertamente, é porque me sinto à vontade com você.
- Relaxa. Tava brincando.

Acho que fui promovida àquele tipo de amiga sapatão com quem um homem comenta à vontade sobre a gostosura das outras mulheres.

- Esse tipo de beleza mexe com o ventre. – ele disse – Faz a gente lembrar que é de carne.
- Ela topa um ménage?
- Você bem que podia arrumar um gatão de academia.
- Pra ler O Código da Vinci em quadrinhos na cama pra ele dormir?
- Você não presta!
- Nunca disse que prestava.

Flauta encantada uma ova! Uma única bunda bem redonda e você arrasta todos os homens do mundo até o inferno.

Os dois tiveram que fazer um trabalho sobre Faulkner. Eu sabia mais sobre Faulkner que qualquer professor daquela faculdade e Marcelo sabia disso muito bem.

- Quebra essa, vai? Leva Roberta pra tua casa e faz um apanhado geral.
- Deixa comigo. Vou usar teatrinho de bonecos. Nunca falha.
- Pára com isso! Ela é mais esperta do que você imagina.
- Você não vai por quê? Tá com medo de mim?
- Vou ajudar nuns problemas do escritório. Já viu, né?

As tardes lá em casa eram animadas. Roberta era realmente mais esperta do que imaginava.; entendia tudo de bate-pronto. E ainda era um bocado divertida, cheia de histórias sobre namorados, paqueras, pretendentes, ficantes e toda essa mitologia da qual eu sempre ouvi falar. Quanto a mim, tive um namoradinho antes de Marcelo e nenhum depois.

- Sabe o Gilberto? – ela perguntou.
- O tronco mais largo do corpo docente.
- No final das aulas ele sempre vem e solta uma piadinha.
- Que tipo?
- Ontem ele me perguntou se eu tinha lido “Descrédito”.
- “Desonra”? Fala de um caso de professor com aluna, o professor é expulso, coisa e tal.
- Exato! Ele disse que acabou de ler esse livro e ficou com medo de que eu arruinasse a carreira dele.
- E você?
- Mandei ele ficar tranqüilo, que se depender de mim ele sempre vai ter a maldita carreira e esses livrinhos de putaria com alunas pra ler.

Tá aí. Gostei dela.

No fim das tardes a gente descia até o bar do Sr. Ferreira pra comprar umas cervejas. O bar parecia intocado pelo tempo, tinha um aspecto fétido, mas vendia a cerveja mais gelada das redondezas. Sr. Ferreira era um era sessentão asqueroso, sempre com um pano de prato imundo pendurado no ombro.

- Oi, Alice. – ele dizia.
- Oi, Sr. Ferreira. – eu respondia.
- Ooooooooooi, Roberta!

Velho descarado!

Na faculdade, Marcelo tomava conhecimento do avanço no trabalho sobre Faulkner e falava do retrocesso em seus problemas com o pai. Ele sempre dava um jeito de se livrar de Roberta e vinha desabafar comigo.

- O velho tá ficando doido. Todo dia, antes de eu vir pra faculdade, a gente quebra o pau.
- Você já passa as tardes inteiras no escritório. O que mais ele quer?
- Que eu me envolva mais, mais e mais. Nunca vai ser o bastante.
- Eu sei que é teu pai, mas dá vontade de mandar pra aquele lugar.
- Mandei ontem.
- E?
- Cortou minha mesada.

O pior ainda estava por vir.

- E o pior – ele disse – é que não tenho mais como curtir esse momento legal que tô vivendo com a Roberta.
- Como assim?
- Você sabe...
- Não.
- Essa coisa toda de... Ah, você sabe!
- Não.
- A gente quer se curtir, mas...
- Não entendo.
- Fiquei sem grana pro motel, caralho!
- Agora entendi.
- É importante pra mim. É o meu momento!
- Do ventre?
- Esquece! Você não tem como entender.
- Porque não sou gostosa?
- Quem tá pra baixo aqui sou eu, Ok? Espera tua vez.
- Ok.

Silêncio. Talvez fosse minha vez.

- Tua mãe ainda chega do trabalho tarde da noite?
- Ah, não! Minha casa não é motel, Marcelo.
- Pra gente era.
- Pra gente era!

Definitivamente, era minha vez. Virei as costas e fui embora.

À tarde, Roberta apareceu lá em casa como de costume. Pediu pra sentar no sofá da sala. Sentamos uma de frente pra outra. Ela tinha uma expressão compenetrada, digna. Parecia até aquelas cenas de novela onde acontecem as grandes revelações. Tenho certeza que ela viu muitas.

- Sei como você está se sentindo. – ela disse.
- Nossa! Como eu me sinto melhor!
- Marcelo me contou a respeito do ocorrido e fiquei deveras decepcionada.

Sim, ela estava falando de um jeito empolado.

- Ótimo! – eu disse – Veio perguntar o preço do pernoite?
- Vocês são tão amigos. Não entendo onde ele estava com a cabeça.
- Acho que o quarto da minha mãe vai cair como uma luva pra vocês!
- Alice!
- Queira me acompanhar, senhorita. Vou lhe mostrar o aposento onde poderão foder à vontade!

Me levantei. Ela continuou sentada. Paralisada.

- Não faz assim, Alice. Por favor. – ela disse.

Suas feições delicadas de menina se contraíram, os olhos castanho-claros tremulavam, as mãos pequenas apertando os joelhos dourados. Ela estava toda naquele momento, naquela posição, naquele olhar. Ela acreditava e era impossível não acreditar junto. Então entendi o maldito poder da beleza de nos sugar pra ela, de nos devorar.

- Você não tem culpa do que o idiota do Marcelo falou. – eu disse.
- Terminamos.
- Não! Isso não! É o momento dele! É o momento do, do... Do ventre, sei lá do quê!

Não sei o que me deu.

- Você não entende. Ele precisa!
- Calma, Alice!
- Cadê o telefone? Telefone! Telefone!

Fiquei descontrolada. Senti que Marcelo estava perdendo algo importante, algo que não era possível entender só com o intelecto. Liguei pra ele:

- Alice, não estou podendo falar...
- Vem pra cá agora!
- Tô no meio duma reunião.
- Roberta está em aqui em casa...
- Desliga esse telefone, Marcelo! - era a voz do pai, no fundo.
- Você tem meia-hora pra aparecer aqui. Senão eu mato essa piranha!
- Alice! - gritou Roberta.
- Escutou a voz dela? - perguntei. - Pois bem... Meia-hora!

E desliguei. Roberta estava aos prantos.

- Sossega, porra!

Marcelo chegou em poucos minutos. Estava pronto para encontrar uma cena de terror, com Roberta cortada em pequenos pedaços, guardados em vários potinhos tupperware.

- Você tem três horas pra baixar o facho dessa doida. – eu disse.

Beijei seus lábios, saí e tranquei a porta.

Só depois me dei conta de que não tinha pra onde ir. Fiquei parada em frente à porta, ouvindo as frases esparsas discussão que vazavam pela porta.

- Eu não vou transar com você aqui... nem em lugar nenhum! – ela gritava.
- (Marcelo respondeu algo que não consegui ouvir).
- Não encosta a mão e mim!

A maçaneta da porta se mexeu. Era Roberta tentando sair. Ouvi os passos de Marcelo se aproximando.

- Foi grosseiro da minha parte, eu sei  – ele disse – mas é que já vejo Alice como uma irmã.
- A porta está trancada?
- Alice trancou.
- Alice! Abra essa porta!

Bum! Bum! Bum! Ela batia. Eu já estava pondo a chave na fechadura.

- Ela disse que volta daqui a três horas. – ele disse.
- Não acredito. Que coisa mais ridícula!
- Foi idéia dela. Você viu.

Discutiram mais um pouco. Depois baixaram a voz. Depois passaram a sussurrar. Depois não consegui escutar mais nada. Minha boa ação estava feita. Sentei com as costas apoiadas na porta, braços sobre os joelhos, cabeça pendendo dos ombros.

Perdi a idéia do tempo. Me senti patética. Chorei. Me senti ridícula por estar chorando. Me senti auto-indulgente. Me pus no lugar de Marcelo. Me pus no lugar de Roberta. O único lugar que não valia a pena era o meu. Imaginei os dois rolando no tapete da sala. Imaginei nós dois. Lembrei dos livros que li. Inúteis, no fim das contas, se nada podem contra esse tal ventre. Peguei no sono.

Quando acordei, vi que anoitecia. Bati na porta, abri e entrei pé ante pé. Roberta saiu do banheiro com os cabelos molhados. Baixou os olhos.

- Nossa! Que vergonha... – ela disse.
- Queria ver essa vergonha toda com as pernas abertas.

Ela riu.

- Obrigada. – ela disse - Por tudo...
- Qualquer mulher do mundo faria exatamente o mesmo no meu lugar.
- É verdade...

Para ironias, pelo menos, ela era completamente virgem.

Roberta resolveu ir embora. Encontrei Marcelo no meu quarto, deitado na cama, pelado, parcialmente coberto pelo lençol e com uma baita cara de satisfeito.

- Barriguinha cheia, bebê? – perguntei, passando a mão em seus cabelos.
- Senta aí.
- Oba! Segundo tempo?
- Tenho mais idade pra isso não.
- Viadinho.
- Você não existe, sabia?
- Tô começando a acreditar.
- Quer casar comigo?
- Quero casar com a Roberta.
- Põe um filme aí pra gente.
- Não sendo Antonioni...

Ficamos lá, assistindo um filminho italiano, tomando cerveja e jogando conversa fora, como nos velhos tempos.

E isso virou nossa rotina. Roberta ia lá pra casa à tarde, eu a ajudava em algum trabalho da faculdade, descíamos, comprávamos cervejas, conversávamos, ríamos. Marcelo chegava, eu saía, eles transavam, Roberta ia embora, eu voltava. Encontrava Marcelo deitado na cama com cara de satisfeito, conversávamos, ríamos e bebíamos cerveja até altas horas.

Foi assim até eu me formar. Depois comecei a trabalhar e a rotina acabou. Marcelo e eu continuamos nos falando. Ele terminou com Roberta assim que paramos de nos ver. Me pergunto quem foi a outra nessa relação.

A Sublime Arte da Letargia

Anselmo, sentado em sua mesa de trabalho, observava pela janela os prédios do centro do Rio, seu matiz cinza, seus ângulos retos, suas formas impessoais. Eram três horas da tarde, faltavam duas para o fim do expediente. Alimentava a doce ilusão de que por muito gastar os prédios com os olhos, os ponteiros do relógio se apressariam e com eles a imprecisa engrenagem de condução dos tempos e momentos. Espiava os objetos à sua volta: o bastão de cola, os bloquinhos de recado, as canetas coloridas e a régua que despontava em meio delas. Já havia concluído a tarefa que haviam lhe deixado, mas não ousava dizer isto ao chefe para não receber mais trabalho como agradecimento por sua eficiência. Baixou os olhos, fitando a própria barriga. Como estava grande! Lembrou-se de todas as tentativas fracassadas de emagrecer. "Depende só de mim!", dizia-se nestas ocasiões. Mas como nenhum resultado aparecia no dia seguinte ao sacrifício de engolir um prato de salada, acabava dando-se por vencido e voltava aos velhos e condenáveis hábitos alimentares. Aliás, era assim em tudo mais. Prometia-se dia após dia, atrasado no ponto de ônibus, que dormiria cedo naquela noite, acordaria bem disposto e seria o primeiro a chegar ao trabalho. Mas, à noite, entretinha-se com alguma futilidade, como um jogo de computador do qual estava enjoado ou algum programa de TV que não lhe interessava, e ia dormir pelas tantas da madrugada, maldizendo-se a si e à sua sina: a de não ter controle sobre as próprias vontades.

Tédio! O pior dos sentimentos do homem, pois até o sofrimento prefere-se a ele, não sendo outra coisa senão a agonia da alma que se esvai por nada. Anselmo sentia-se fortemente atado à cadeira giratória; sua liberdade física contrastava com o aprisionamento que sentia dentro de si.

O telefone tocou. Viu-se de repente esperançoso ao imaginar que alguém no mundo precisava lher falar, esperança esta que desapareceu assim que a voz esganiçada da ex-mulher começou a melhtralhá-lo com queixas sobre o filho dos dois, dizendo que o garoto necessitava de um pai de verdade, presente, de voz ativa e blá-blá-blá. As reclamações constantes remontavam à época do casamento falido e a resignação constante de Anselmo sempre tirou a mulher do sério. Desta vez não foi diferente, ouviu tudo calado. Foram muitas as ofensas feitas por ela ao telefone, mas que não foram contudo absorvidos, pois em situações desagradáveis como esta a mente de Anselmo armava-se de um estado letárgico que abstraía tudo. E assim desligaram, ela irritada, ele mais entediado que antes.

Levantou-se e moveu lentamente seu corpo pesado na direção ao banheiro. No caminho, passou pela secretária. Fitou seu belo par de pernas. Desviou, porém, afetadamente o olhar ao perceber que ela lhe dirigia um cumprimento seco. Respondeu com não mais que um discreto aceno de cabeça. No lavabo lavou o rosto, apoiou os braços sobre a pia e observou a própria imagem no espelho. "Derrotado!", disse a si mesmo em voz alta, erguendo o dedo indicador. A porta do banheiro abriu-se, tendo dado tempo suficiente para que o colega de trabalho Marcelo presenciasse aquele momento de destempero.

- O que está acontecendo, meu camarada? - perguntou Marcelo em tom zombeteiro.
- Hé-hé. Estava apenas lembrando... de um filme... que eu vi. - respondeu gaguejando.

Saiu a todo vapor e, tentando fugir logo daquele constrangimento, abriu a porta com ímpeto, sem dar-se conta de que o Sr. Soares, chefe do setor, aproximava-se pelo outro lado. A porta acertou-lhe em cheio o nariz, derrubando seus óculos no chão e deixando-o tonto por alguns instantes.

- Mil perdões, senhor. Eu estava meio distraído... - começou Anselmo.
- Eu percebi! - cortou o chefe, recompondo-se - Mas deixe isso pra lá. A quantas anda aquele relatório que lhe pedi?
- Já está quase pronto.
- E quando deixará de estar "quase"?
- Hoje, no final do dia, mando ele para o seu e-mail.
- Já estamos no final do dia. - disse Sr. Soares, consultando o belo relógio prateado no pulso - Isso significa que somente amanhã vou poder consultá-lo. Mas não faz mal, o importante é que de manhã cedo (Se é que você chegará cedo amanhã) comece logo a confeccionar aquele outro relatório do qual lhe falei e que ele fique pronto à tarde.
- Sr. Soares, eu acho que não dá tempo de...
- Peça ajuda ao Marcelo, que é mestre nessa arte dos relatórios. Ah, olha ele aí - e apontou para o citado colega, saindo do banheiro. - Meu caro Marcelo, você pode dar uma força para o Anselmo amanhã num relatório que eu pedi?
- Claro. Sem problemas - respondeu Marcelo solicitamente.
- Acho que não é necessário. - disse Anselmo - Veja bem, eu...
- Mas você acabou de me dizer que não consegue. - interrompeu Sr. Soares - É melhor pedir ajuda a um colega mais capacitado do que não concluir a tarefa no tempo devido. Não é vergonha nenhuma.
- Com certeza! - exclamou Marcelo. - Amanhã a gente senta junto e detona esse relatório rapidinho.

Ambos despediram-se de Anselmo antes que este pronunciasse palavra. Odiava Marcelo por este poder de atrair atenção sobre qualidades que nem mesmo possuía. Via-se infinitamente mais competente que o colega na "arte dos relatórios", tanto que concluíra na metade do prazo o pedido do chefe, não havendo-o entregue apenas por langor. Das vezes que dividira tarefas com ele, a divisão fora: Anselmo ficara com o trabalho e Marcelo com o crédito. Não que Marcelo lembrasse um orador do areópago ateniense, mas comparado à articulação de Anselmo - seu olhar perdido, que aparentava buscar abrigo dos olhos do interlocutor, seu falar incerto que punha em dúvida quem ouvia-lhe falar sobre suas mais profundas convicções - comparado a tudo isso Marcelo era o próprio Mercúrio.

No dia seguinte, exibindo no rosto o inchaço de ter despertado há pouco, Anselmo, atrasado como sempre, chegou a sua mesa de trabalho. Marcelo, como de costume, havia chegado há mais de uma hora e estava navegando em seus sites de mergulho, enquanto degustava um grande copo de café.

- Fala, Anselmo! Hoje a gente detona aquele relatório, hein? Assim que eu terminar isso que tô fazendo aqui, sento lá do seu lado pra te ajudar. - disse Marcelo animadamente, esticando o pescoço sobre o monitor.
- Sem problemas. - foi a resposta lacônica de Anselmo.

Anselmo sentiu seu ventre inflamar, pois sabia que Marcelo não se levantaria dali até o meio-dia, quando finalmente iria se aproximar, perguntar como o colega estava se saindo e avisar que depois do almoço eles "detonariam" o relatório. E no fim do expediente, tão logo Sr. Soares chegasse, Marcelo saltaria diante dele e, exibindo propositadamente seu palavreado técnico ininteligível, discorreria sobre mil dificuldades do relatório que ele sequer olhara e como eles - confiando plenamente que Anselmo concluíra a tarefa - haviam superado todas elas. Esta era sua tática para obter o reconhecimento do chefe sem mover uma palha e tinha em Anselmo a vítima perfeita, visto que este nunca esboçava reação ao vampirismo do colega. Mas desta vez Anselmo estava determinado a combater o algoz com todas as suas forças, que não eram muitas, ele sabia.

O relógio marcava dois minutos para o fim do expediente quando Sr. Soares despontou no corredor. Marcelo pulou imediatamente de sua cadeira e posicionou-se ao lado de Anselmo. Estava armado o bote. O chefe nem teve tempo de cumprir seu papel de cobrador de resultados, pois Marcelo não quis perder o deleite de desfiar seu vocabulário nebuloso com se fosse um rosário. - E então, – concluiu Marcelo – resolvido o problema dos vínculos dinâmicos entre as tabelas ficou fácil concatenar as informações resultando na visualização pretendida para os dados brutos. - Oh! Muito bom, Marcelo. – admirou-se Sr. Soares. – Você nunca falha na arte dos relatórios.

Sr. Soares pediu para Anselmo mostrar o resultado na tela e para sua surpresa o relatório exibia centenas de linhas repetidas e várias informações inconsistentes. Anselmo, seco, disparou:

- É, parece que ainda existe um probleminha no vínculo entre as tabelas...
- Mas não é possível! – disse Sr. Soares - Preciso enviar este relatório para a sede amanhã antes do almoço. Como isso foi acontecer, Marcelo?
- Não se preocupe, Sr. Soares. – respondeu Marcelo – A gente vai dar um jeito nisso.
- Claro que vão! E ainda hoje! – sentenciou o chefe, se retirando.

Anselmo sabia exatamente onde estava o problema e o havia plantado ali de propósito. Estava cansado de servir de degrau para o colega malandro.

- Merda! Logo hoje que eu ia sair com a Renatinha! Vamos Anselmo, conserta logo esse troço. – disse Marcelo, implorando.
- Não faço idéia de onde esteja o problema. - respondeu Anselmo - Fiz do mesmo jeito de sempre e nunca tinha dado isso.
- Era só o que me faltava! – disse Marcelo. Pegou o celular e discou. – Alô, Renata? Oi, sou eu. Deu um probleminha aqui no trabalho daqueles que só eu posso resolver. É... É... Não! Não tô cancelando nada não. Vai indo pro bar que eu te encontro lá. Ora... Pode ir! Confie em mim. – e desligou.

Marcelo olhava para a tela do computador como se olhasse para o alfaberto cirílico. Anselmo, que nada sabia sobre o encontro do colega, fazia um esforço sobrehumano para conter sua satisfação e disfarçá-la de fastio e agravo. Sentia-se agraciado pelos deuses.

Conforme o tempo ia passando, Marcelo ficava mais irritado. Seu telefone tocava de dez em dez minutos. A voz feminina do outro lado da linha foi ficando cada vez mais audível e esganiçada. Anselmo já conseguia entender frases inteiras com a ajuda do silêncio que se instaurava com o avançar da noite no Centro da Cidade. Já eram quase dez.

- Merda! Ela se mandou. – disse Marcelo, fechando seu celular último tipo – E ainda fez questão de dizer que nunca mais vai marcar nada comigo.

Dali em diante Anselmo divertiu-se com uma sucessão de tentativas estúpidas de Marcelo para resolver o problema. Este último realmente não tinha idéia do que fazia. Anselmo se perguntava de quantas vítimas aquele vampiro sugava o sangue para manter seu emprego por tanto tempo e com tanto prestígio. A arte dos relatórios! Era realmente algo bonito de se ver.

O dia amanheceu. Anselmo havia dormido em sua cadeira. Apenas baixara a cabeça sobre o peito e cochilara sabe-se lá por quanto tempo. Seu pescoço, ombros e coluna doíam. Encontrou Marcelo com os olhos vermelhos fixos no monitor. Era triste. Em seu rosto abatido lia-se um misto de desespero e estupefação. Parecia não acreditar que sua carreira cuidadosamente construída, como que confeccionada num tear, desmoronasse diante dele assim, numa única tacada. Faltava tão pouco para ele ser promovido a assistente gerencial e depois disso é que não precisaria mesmo saber criar relatórios. Então Sr. Soares chegou.
- Ai, meu Deus! – exclamou o chefe, levando as mãos à testa – Viraram a noite e pela cara de vocês não conseguiram nada. Se este relatório não estiver na minha mesa até meio-dia, vocês vão ter sérios problemas!

Anselmo estava excitadíssimo. Tinha tudo planejado em sua mente. Quando faltassem apenas dez minutos para o fim do prazo, diria a Marcelo que iria ao banheiro e então irromperia sala do chefe adentro anunciando a solução definitiva para o problema, sem dar ao colega a chance de colher uma migalha sequer dos louros da vitória. E quando faltavam pouco mais de dez minutos, levantou-se e foi ao banheiro. Ficou um bom tempo lá, jogando água fria no rosto. Olhou-se no espelho.
- É hoje! – disse, tascando um beijo no ar para própria imagem refletida.
Ao voltar, notou que Sr. Soares não estava em sua sala. No caminho de volta, viu que João, funcionário mediano - mas um gênio dos relatórios se comparado a Marcelo -, estava sentado em seu computador. Sr. Soares e Marcelo estavam com ele e falavam efusivamente. Anselmo gelou. Foi quando o chefe o avistou, fez um largo sinal com o braço para que se aproximasse e disse em alto e bom som, para que todos escutassem:

- Anselmo! Não é possível. Vocês viraram a noite por causa de um errinho idiota que o João resolveu em dois minutos?! Eu não acredito! Pra minha sala, os dois, agora!

Anselmo sabia muito bem o que aconteceria. Não, não seria demitido. Mas seria obrigado a ouvir toda sorte de críticas absolutamente infundadas sobre si. Veria aquele homem, que só passava por ele como um raio, comportando-se como o legítimo legislador de sua vida, o autêntico senhor de seus dias; abanando a cabeça, resignado, como se suportá-lo fosse um fardo vindo dos céus; reprovando cada detalhe de seu comportamento, muitos inventados ali, de improviso. Mas o pior de tudo era receber sua misericórdia. Ser obrigado a engolir silenciosamente sua atitude pretensamente magnânima, que outorga um perdão claramente imerecido, simplesmente por participar de uma natureza superior. Aquilo era pior do que ver Marcelo levando o crédito. Pior que ouvir sua ex-mulher reclamar ao telefone. Pior que observar os ponteiros inflexíveis do relógio. Pior que tudo, tudo na vida. Mas Anselmo conseguiu abstrair, refugiando-se em seu estado letárgico. Era somente ali que se sentia bem.