Sangue no chão de taco

Ela entrou e as paredes tremeram. Seus olhos vidrados anunciavam meu fim. A visita era rápida, estratégica, tinha pressa. Viera me eliminar. Puxou um pequeno revólver da bolsa e me acertou bem na testa. Paf! Senti um impacto. Apaguei.

Recobrei a consciência fitando as pás do ventilador de teto, que giravam, giravam. Ela sentada no chão, junto ao meu corpo, acariciando minha cabeça, beijando o buraco da bala.

- Ah, como te amo! - ela disse, percorrendo carinhosamente o diâmetro do ferimento com a ponta do dedo. - Mas não tive escolha. A vida me chamou, benzinho. Quero o risco, quero o dano, quero colecionar dores diferentes das que você me causa.

Meu sangue se espalhando lentamente pelo chão de taco, penetrando as gretas, ganhando o mundo.

- Nos amamos mais que qualquer casal já se amou. Nos amaríamos daqui a cem, duzentos anos! Por isso te matei. Porque preciso me perder na multidão, no comum. Tem um cara aí fora, na rua, me esperando. Ele é raso, não me desafia, não me acrescenta, mas ainda assim preciso me perder nos braços dele. Entende?

Não conseguia me mexer, nem falar, nem pensar. Só me era permitido ouvir. Nem dor eu sentia. Ouvia e só.

- Tive que escolher entre minha vida e a tua. Se ignorasse essa coisa berrando aqui dentro, mataria a mim mesma. O único jeito de me salvar foi sacrificando você, viver por intermédio do teu sangue. Você, meu cordeirinho pascal.

Ela levantou e foi até a cozinha. Ouvi barulho de armários, gavetas. Voltou com fósforos e fluído de isqueiro.

- Você será minha lembrança mais doce, meu idílio juvenil, a esperança do amor que não fracassa, que morre eterno, vigoroso. Por isso te matei, cordeirinho, porque te amo, porque te quero infinito, a trilha sonora da minha perdição, da minha dor.

Banhou meu corpo com o fluído, riscou o fósforo e ateou fogo. Me assistiu queimar por alguns minutos, num silêncio cerimonioso. Ouvi suas últimas palavras com alguma dificuldade, devido ao crepitar intenso da minha pele.

- Serei eternamente grata a você, benzinho, por tudo, tudo, tudo. Não pense que sou ingrata! - e secou as lágrimas e abriu um sorriso. - Ah, que besteira a minha! Você sempre me entendeu.

E foi embora, não sem antes desligar o ventilador. Fiquei ali, no chão de taco, queimando, enegrecendo, assistindo, por entre as labaredas, as pás do ventilador serem vencidas lentamente pelo ar.

Um comentário:

fjunior disse...

isso ficou bom, hein? Gostei.