Ela queria uma vida

Blim-Blom! Era Joana. Joana e seu marido escritor. Ele entrou primeiro, branco e frágil feito um bule de porcelana. Olhos verdes, azuis, não sei, eram de uma cor tão fraca. Tudo nele, aliás, parecia sem cor. Sobre o quê aquela merda de homem escrevia? Talvez o problema nem fosse ele, mas o fato de estar ao lado de Joana, a mitológica, a devoradora, a avalanche de madeixas negras encaracoladas, o arsenal de dentes perolados, os grandes olhos cor da noite, os peitos que amamentariam metade da África. Era bonita de dar medo.

Mal nos sentamos à mesa de jantar e o escritor começou a tossir feito tuberculoso e uma série de placas avermelhadas surgiram no seu rosto cor de vela. Marcela, minha mulher, tomara o cuidado de preencher os espaços vazios da estante com dezenas de livros que comprara pelos sebos da cidade; não queria parecer inculta diante da visita célebre; mas o escritor parecia não saber da existência dos livros de segunda, terceira, vigésima mão. Para ele, os livros iam direto pro céu depois de lidos, enquanto minha sala não passava dum medonho cemitério de impressões digitais; o suor, a gordura, as células epiteliais de cada leitor ainda ali, testemunhas eternas do seu amor - e posterior desamor - por aqueles livros.

Fomos pra copa, onde a mesa era menor. Não couberam as baixelas e travessas novas; ficaram só os pratos e talheres novos. Tudo comprado para impressioná-los. O escritor se recuperava aos poucos do fricote, enquanto Marcela bombardeava Joana com perguntas sobre as viagens dos dois ao redor do mundo. Mas o que eu mais temia ainda estava por vir.

- Sabe, - disse Marcela, dirigindo-se ao escritor - achei muito interessante a forma como você reescreve os clássicos nesse sistema de signos contemporâneos.

Ela tinha lido isso no Google.

O escritor, que até então havia se mantido calado, conteve a muito custo um sorriso de satisfação. Sentiu que era seu dever iniciar um extenso monólogo sobre este monstro disforme e infronteiriço que ele apelidava de "literatura". A voz, baixa e monótona, parecia mais um zunido. Falou dos círculos acadêmicos, da crítica, do mercado, das feiras, dos prêmios.... Será que os livros dele eram esse pé-no-saco? E se não eram, por que não desembestava a falar de algum puta assunto, um assunto realmente do cacete, digno de que alguém desembolse quarenta pilas num calhamaço de papel e jogue fora seu tempo livre debruçado sobre ele, tentando enxergar alguma merda de sentido nesse mundo?! Se alguém não consegue entreter uma plateia que cabe na mesinha de uma copa, deveria ter o direito de escrever um livro negado.

Os olhinhos de Marcela, entretanto, cintilavam em transe. Nem ouvia, apenas admirava aquela figura de um mundo inacessível. Marcela queria grandes questionamentos e verdades elevadas, queria uma vida, mas eu não tinha uma pra dar. Já o escritor era um Prometeu trazendo o fogo sagrado, um profeta anunciando a mensagem que ela não podia compreender e que, portanto, parecia sublimada e inaudita.

Fui ao banheiro e fiquei um tempo lá, jogando água fria na cara, tentando juntar fôlego para engolir outra dose daquele charlatanismo. Então Joana apareceu na porta.

- Quando ele começa a falar, não para mais. - disse ela.
- Tem quem goste.
- Tua mulher nem reparou que eu levantei.
- Quer usar o banheiro?
- Quero usar você.

Levantei-a pela bunda e a joguei sobre a pia de mármore. Ela estava de vestido curto e não foi preciso muito esforço para arrancar-lhe a calcinha. Penetrei-a com vigor. Minhas mãos se transformaram em garras e onde quer que pousassem apertavam forte e deixavam roxos e vermelhões e arrancavam gemidos baixinhos de Joana, que puxava os pelos da minha barba e segurava minha nuca tentando se equilibrar na ponta da pia.

- Forte! Forte! - ela dizia entre os dentes.

E a violência me possuiu e meti com força e fodi a literatura, fodi os críticos, as verdades elevadas, os sentidos inauditos, os prêmios, o Google, a cara chupada daquele toco de cera filhadaputa!

Gozamos.

- O que você tá fazendo com esse retardado? - perguntei, extenuado.
- Você não parou melhor que eu. - ela disse, roçando a cabeça no meu peito feito gata.

Refizemo-nos sem pressa. Ainda podíamos ouvir o zunido monótono da voz do escritor vindo da copa. Ele podia falar sobre aquilo até um cometa rasgar a Terra se ninguém o interrompesse. Reaparecemos juntos, sem nenhuma tentativa de disfarce. Por lá, ninguém nos deu bola.

- Vamos, amor. Tá tarde. - disse Joana.
- Como o tempo passou rápido. - ele respondeu, olhando o relógio.
- Nem fala. - acrescentei.

E foram embora.

Marcela estava radiante, fascinada, em pleno êxtase.

- Amor, - ela disse. - precisamos viajar, ler, expandir os horizontes!
- Claro, amor. Vamos sim. - respondi, com embargo na voz.

Acordei no meio da madrugada e não vi Marcela na cama. Eram quase quatro da manhã e a luz da sala estava acesa. Fui até lá e encontrei-a esparramada no sofá, roncando com um exemplar encardido de Os Irmãos Karamazov aberto sobre o peito. Guardei o livro na estante - estava na terceira página -, peguei-a no colo e levei-a de volta pra cama.

8 comentários:

Unknown disse...

Irônico e cru. Gostei do texto.

Kessia disse...

caraca!
o cara n perdeu tempo! haha

MaxReinert disse...

Opa!
Vim te seguido desde o Overmundo!
Muito bom esse lugar aqui!
Tá linkao já!
abraço!@

Caio Miniaturas disse...

Heheheh... e o Google continua formando "pensadores inteligentes"!! Adorei a sua linha narrativa. Tinha que ser mesmo geminiano!! Boa semana, Rafael.

ALBERGUE MENTAL
http://caioalbergue.blogspot.com

Adriana Gehlen disse...

mas booooooooh
muito foda!

forte! forte!
devagarinho tbm é bom ... varia-se.
ai. tive um orgasmo lendo isso.

...

Adriana Gehlen disse...

meus faróis nao estavam acessos, tava de sutiã !
hahha

Adriana Gehlen disse...

acesos.

e aí. nunca mais posta nessa vida?????????

Anônimo disse...

sr. rafael!

e eu pensando que meu blog estava desatualizado... =p

olha, lendo contos assim (que não deixam de expressar certa [ou total, quem sabe]) realidade é que eu penso o quanto é diversa (e pode ser bizarra) a idéia de prazer. o livro do dostoievski, embora largado na terceira página, deve ter tido o mesmo efeito para marcela que o encontro dos dois no banheiro. rs. te falando a verdade: não gostei muito da descrição desse encontro, hum, meio animalesco (rs) dos dois. me fez lembrar alguns livros do sidney sheldon, nem sei se vc já leu algo dele, mas tinha umas coisas assim que depois de uns três livros lidos eu me cansei, me fez não gostar. de qualquer modo, não deixa de ser uma boa descrição. aliás, é uma virada total no texto, haha. tava lendo aqui, com sono, literatura, diálogo, pow, legal... e eis que tudo muda radicalmente, rs. gostei do conto. mesmo. aliás, não se ache não, mas seus contos são muito bons.

adeus.

bjim.