Número 98

Ela tinha voz de desejo incubado. Voz de quem se esconde atrás de um rosto angelical e reserva sua devassidão para os desconhecidos, os anônimos, os que não querem vê-la sob a máscara da beatitude. Nos esbarramos num bate-papo por telefone. Eu, desempregado, barrigudo e com um quê de depressão, recebi aquela vozinha espevitada como uma dádiva dos céus. Passava minhas tardes de pau duro, ouvindo ela narrar aventuras sexuais. Ela disse que tinha pai empresário e mãe estilista, que tinha copeiro, jardineiro, cozinheiro, motorista, dois huskies siberianos e que passou as últimas férias no Taiti. Eu disse que era desempregado, barrigudo e com um quê de depressão. Ela riu. Disse que tenho senso de humor.

Ménage a trois, quatre, cinq, six. Ela já fez de tudo, em todas as posições, em todos os orifícios. Transou com mulheres, veados, gigolôs, travestis e com um surdo-mudo que bateu à sua porta vendendo drops. Pagou boquete pro motorista com o pai no banco de trás, entretido no caderno de esportes. O próprio pai tentou comê-la, mas ela não topou por achar seu pinto muito pequeno, apesar de ter saído de lá. Flagrou a mãe em altas surubas na sala de estar. E se juntou a elas, sem cerimônias.

Eu ficava esparramado no sofá, bebendo vinho barato e curtindo aqueles contos-de-fada pornográficos. Não, ela não tinha nenhum talento pra inventar as tais estórias, mas aquela vozinha aguda me deixava de pau duro.

- Quando a gente vai se encontrar? - perguntei.
- Não tá bom desse jeito?
- Quando?
- E se você for psicopata?
- Quando?
- Terça?
- Não dá. Tenho entrevista de emprego.
- É terça ou nunca!
- Nunca.
- Já te contei que pratico pompoarismo?
- Já.
- Então, vai trocar isso por um empreguinho miserável?
- Quem te disse que é miserável?
- Então vai pra tua entrevista!
- Me dá o endereço.
- Rua tal, número 98.
- Me espera às cinco.

O empreguinho era mesmo miserável. Além do mais, entrevista de emprego eu descolava duas por mês. Mulher não. Tinha certeza que comendo a garota todos os meus problemas estariam resolvidos. A barriga era na certa algum tipo de prisão de sêmen: toda aquela porra entalada dentro de mim tinha que dar merda mais cedo ou mais tarde. Já o desemprego era um nítido problema de auto-confiança, porque os caras que fazem entrevistas de emprego lêem nos olhos do candidato há quanto tempo ele está sem comer ninguém. E a depressão, bem... Depressão é o cacete!

Mas eu precisava me sentir mais confiante, ainda que provisoriamente. Encontrei três livros empoeirados de Machado de Assis largados na estante e levei-os num sebo que tem lá perto de casa. O dono ficou maravilhado: eram edições clássicas, raríssimas, das primeiras editadas no Brasil. Me deu quinze reais. Saí de lá e entrei na lojinha de roupas que fica ao lado. Pequena, abafada e atulhada de caixas de papelão por todo canto. Parecia esquecida pelo tempo, nenhum traço do progresso humano dos últimos séculos, à exceção da lâmpada elétrica pendurada no teto, que iluminava parcialmente o rosto sepulcral da velha de cento e cinquenta anos que atendia no balcão.

- Quero uma sunga. - eu disse.
- Tamanho? - perguntou a velha com voz de além-túmulo.
- Médio. - respondi.
- Prazer, Nélio.
- Médio! - gritei.
- Claro, claro...
- Quero aquele outro modelo ali.
- Tipo shortinho?
- Caralho... É, tipo shortinho.
- Toma, meu filho.

Pus a sunga na frente da corpo pra ver como ficava.

- A senhora acha que vou ficar sensual nela? - perguntei.
- Com esse barrigão de verme? - e soltou uma gargalhada de bruxa maligna.
- Quanto custa essa merda?
- Quinze reais.
- Literatura é pano de bunda mesmo.

Larguei o dinheiro no balcão e fui embora. Nada abalaria minha auto-estima revigorada pela nova sunga-shortinho.

No dia marcado, saí de casa com bastante antecedência. Não queria me atrasar. Afinal, a guria podia ser mentirosa, mas com aquela imaginação pervertida alguma diversão nós teríamos. Cheguei na tal rua, número 98, lado par. Um casa baixa, a pintura estourada pelas infiltrações, um portãozinho corroído, um caminho de concreto rachado até a porta. Bati palmas. Um garotinho de oito anos apareceu.

- Chama lá tua irmã. - falei, fazendo voz de homem.
- Não tenho irmã.
- Tua mãe, que seja.
- Não tenho mãe.
- De alguma buceta você há de ter saído.
- Sou filho da vovó.

Que bonitinho. E lá veio a velha caindo as pedaços, cacarecando e rangendo feito um Fusca 68.

- O que você quer, seu maníaco? - disse a velha bruxa; eu já estava me acostumando com elas.
- Aqui é rua tal, número 98?
- Depende. O que você quer?
- Estou procurando uma garota chamada...
- Meu filho, se você não veio comprar baseado, é melhor se mandar ou leva tiro.

E dos fundos da casa surgiram dois capangas enormes. Saí correndo. Peguei o telefone.

- Sua vagabunda, você não mora na porra do 98!
- Moro sim.
- Então sai agora.
- Não tô em casa.
- Vagabunda!
- Aconteceu uma emergência. Não fica bravo comigo.
- Eu estou no 98! Só tem uma velha bruxa e dois gorilas vendendo maconha.
- Moro sim!

E desligou.

Lá estava eu, sozinho numa rua deserta, à procura de um personagem doentio, fruto da falta do que fazer vespertina de uma guria pirada. Onde o pau de um homem não o leva! Fui caminhando lentamente na direção do ponto de ônibus, tentando aplacar a vontade que me deu de cortá-lo fora. Reparei que a tal rua era feita só de casas e sobrados. Parecia rua do século dezenove ou coisa assim. Mas na rua de trás, quase como um obelisco fálico, havia um prédio residencial de uns vinte andares. Comecei a observar aquela enorme massa de concreto fincada entre as casinhas coloridas. Destoava, era feio. Lá pelo quinto andar, um vulto que estava na sacada correu para dentro do apartamento. Foi rápido, mas deu pra ver claramente que se tratava de uma mulher... De uma mulher jovem... De uma mulher jovem que me observava. Filha da puta!

Fui correndo que nem louco para a rua de trás. Quando cheguei ao tal prédio, a surpresa: número 98. A louca me deu o número certo na rua errada. Na certa queria me ver sem correr nenhum risco. Pensei em chamar o porteiro e perguntar pelo nome dela, mas quem garante que ela me deu o nome certo? Atravessei a rua, entrei numa lanchonete bem limpinha que tinha em frente, daquelas com laranjas e melões pendurados na parede, e pedi uma cerveja. Bebi lentamente. Uma, duas, três cervejas... A garota desceu. Quer dizer, era bem parecida com o vulto que vi correr da sacada. Joguei uma nota de dez sobre o balcão e fui atrás dela.

Passava das seis. A noite já havia derrotado o dia. Fui seguindo a menina a uns dez passos de distância. Parecia ter seus dezoito. Vestia calça jeans e uma blusinha vermelha. Não era baixa, tinha cabelos castanhos escorridos até a cintura e uma bunda enorme. Andava serelepe, rebolando pra lá e pra cá.

Saquei o celular, liguei pra ela.

- Oi, amorzinho! - ela disse.

Ah, aquela vozinha aguda, espivitada, inconfundível! Apertei o passo, cheguei perto, puxei-a pelo braço:

- Oi, amorzinho. - eu disse.

A menina entrou em transe, começou a se tremer toda, fora de controle. Chorava, implorava, berrava. O rostinho angelical em puro pavor. Parecia diante da morte, do mal, do diabo, do fim.

- Me deixa! Eu não fiz nada! - ela gritava, as lágrimas escorrendo aos rios.
- Ei, calma. Escuta...
- Eu sou virgem! Me solta!

Conseguiu se desvencilhar dos meus braços e caiu no chão numa convulsão histérica. Parece ter batido com  a cabeça em alguma coisa. E parou. Sorte minha daquelas ruas serem desertas. Quem acreditaria em mim quando eu dissesse que aquele rostinho virginal dera sentido às minhas tardes vazias com a devassidão que guardava nas cisternas da alma? Deixei-a lá, estendida no chão e corri o quanto pude.

Minhas tardes voltaram a ser o que eram antes: sofá, vinho barato e um quê de depressão. A vida às vezes pode ser uma merda. E a merda sempre pode feder mais.

4 comentários:

Raphael Rap disse...

Putz cara, se o cara tivesse internet já tinha descoberto que isso nunca daria certo rs...

Unknown disse...

A grande ironia é que se entrarmos num chat do UOL ou do Terra agora vamos encontrar menininhas desse mesmíssimo naipe.

E talvez elas nem sequer tenham sexo feminino.

Kessia disse...

uma virgem n deveria saber dessas coisas... rs

Lívia disse...

"- Literatura é pano de bunda mesmo." hahaha, isto é verdade.
[]'s