Do Tamanho do Mundo

Felipe sentia nos lábios o gosto do talento. Desde criança achava que seus dez em português eram prenúncio de algo maior. Gostava de ler grandes autores e de escrever poesias em seu blog enquanto os colegas torciam por seus times no Maracanã e enrabavam vadias no banco de trás de seus carros. Acompanhava diariamente as estatísticas de acesso de suas poesias e verificava constantemente a chegada de novos comentários, que eram sempre elogiosos, empolgados, bons de se ler. Na faculdade, conseguiu um leitor fiel para seus textos: Danilo, um magrelo, alto, com cara de manga chupada e que falava pelos cotovelos. Era chato até cansar, mas gostava de suas poesias.

Felipe entrou no banheiro da faculdade. Haviam dois mictórios. Num deles mijava Paulão, colega de classe barbudo, de voz grave e pouco dado a sorrisos. Felipe parou diante do outro mictório, abriu a braguilha e começou a mijar.

- Li algumas de suas poesias. - disse Paulão.
- Sério, cara? E aí? - perguntou Felipe.
- Achei uma merda.

A frase parecia ter sido dita num megafone. Felipe sentiu a pele queimar.

- Você não faz parte do meu público. - disse.
- O público da merda é a latrina. - finalizou Paulão, balançando o pau e virando as costas.

A urina de Felipe parou de sair. Era a primeira vez que falavam assim do que escrevia. Ficou ali, estático, de pau na mão, olhando para o mármore do banheiro.

Passou a parir poesias como quem tem os dias contados. Tudo virava poesia: cocô de cachorro na calçada, pelo de barba na pia do banheiro, zunido de lâmpada fluorescente, reflexo de sol em vidro de carro. Escrevia com fúria, com desejo, forçando as emoções como cortasse a própria carne.

- O que tá havendo contigo? - perguntou Danilo.
- Nada.
- Você mudou seu jeito de escrever.
- Mudei não.
- Tá escrevendo em maior quantidade também.
- Nada que preste.
- Mostrei algumas poesias suas pra Carina. Ela adorou.

Felipe tentou conter o sorriso mas não conseguiu. Sempre idealizou a imagem do artista resignado que exerce seus dons por uma espécie de obrigação divina. Nada de glamour, glórias e flashes. Mas o sorriso que ganhou seus lábios veio com uma avalanche de prazer. Tentava falar, mas sorria.

- Carina... Carina? - perguntou Felipe.
- É, a professora de filosofia.
- Bonita ela, né?
- Bonito sou eu, ela é maravilhosa!
- E ela gosta de poesia?
- Da sua, gosta.

Não demorou muito para que Carina viesse procurá-lo. Era uma loira oxigenada bem pra lá dos trinta, mas com um corpo que tirava todos os alunos do prumo. O número de espectadores em suas aulas sempre variava de acordo com o tamanho do decote que usava. Não que fossem vulgares, mas seus seios eram tão generosos que qualquer cortezinho na blusa se tornava um espetáculo da natureza.

- Sua poesia tem uma métrica bacana, sabe? - disse Carina.
- Você é a primeira a reparar.
- Já pensou em publicar?
- Não.
- Devia.

Publicar. Ser lido. Reconhecido. Talvez realmente, efetivamente, tivesse algum talento. Era questão de tempo.

- Meu ex-marido tem uma revista independente.
- Revista?
- Publica umas matérias, contos, poesias... Mas só escritor independente. É ele quem seleciona.

Finalmente as engrenagens do universo começavam a girar. Seus dez em português não podiam ser em vão.

Telefonou no dia seguinte para Nelson, o ex-marido de Carina.

- Então, eu escrevo poesias. - disse Felipe ao telefone.
- Hum...
- Como eu faço pra te mostrar?
- Vamos beber.
- Hã?
- Beber, cacete. Vamos beber!

Encontraram-se num boteco fétido na Lapa. Ali perto haviam bares sofisticados que tocavam samba tipo exportação para gringos perfumados, mas Nelson preferiu sentar debaixo dos arcos, em meio ao cheiro cáustico de camadas sobrepostas de uréia ressequida. Sentaram na calçada, entre maconheiros, putas e travestis.

- É daqui que vem a poesia - berrou Nelson - do ventre da humanidade! - e virou a garrafa de uísque na boca.

Felipe não sabia como se comportar diante daquela figura grosseira. Se perguntava o que Carina, a deliciosa professorinha de filosofia, havia visto nele.

- Já comeu travesti? - perguntou Nelson.
- Não!
- É bom... São menos frescos. Toma uma gole.
- Não bebo uísque.
- Bebe o quê?
- Vinho.
- Veadagem, hein? Compra uma garrafa ali então.

Felipe se levantou e foi até o boteco em frente. Um gordo de cabeça chata e com a metade da barriga escapando por baixo da camisa surrada o atendeu. Felipe perguntou as marcas de vinhos disponíveis e o gordo soltou uma risada irônica. Só havia uma e Felipe nunca tinha ouvido falar dela. Comprou o vinho e voltou para junto de Nelson, que a essa altura já havia acabado com metade da sua garrafa.

- Não come traveco e não bebe uísque. O que você faz então? - perguntou Nelson.
- Escrevo poesia.
- Sobre o quê?
- A vida.
- A vida é um cú. Do tamanho do mundo!

Felipe queria ir embora daquele lugar. Foi quando passou um travesti num salto-plataforma multicolorido. Era negro, tinha batom vermelho capeta nos lábios e uma peruca loura de fios desgrenhados na cabeça. Suava e fedia como um cão.

- Senta aqui, docinho. - disse Nelson, puxando o travesti que caiu em seu colo. Suas coxas grandes, azuladas, com pelos que despontavam aqui e ali, revelavam a musculatura masculina. - Preciso que você ensine alguns truques pra esse meu amiguinho poeta.
- Nelson, você está passando dos limites. - disse Felipe.
- A poesia não tem limites, baby.
- E o que você entende de poesia?
- Mais do que você entende de trocar suas próprias fraldas, seu merdinha!

Felipe levantou e começou a andar.

- Garoto! - chamou Nelson.
- Que foi?
- Vai beber essa merda?
- Não.
- Então deixa aqui. Meu uísque tá acabando.

Felipe voltou, entregou-lhe a garrafa de vinho e foi embora.

No dia seguinte, ao entrar na sala de aula, se surpreendeu ao ser alvo de todos os olhores. Na lousa, uma poesia sua escrita com caneta marcadora.

- Palmas pro poeta! - gritou Danilo.

Enquanto meia-dúzia acompanhou Danilo nas palmas, o restante permaneceu olhando a cena num misto de curiosidade e sarcasmo.

- Conseguiu publicar a merda das tuas poesias, cara? - perguntou um aluno no meio sala.
- Se o que você escreve é isso aí que tá no quadro, tomara que não tenha conseguido - disse outro.
- Ai, gente. Quer parar? Eu gostei. - disse uma menina do canto.

E a sala converteu-se num único e caótico debate sobre as poesias de Felipe. Todos falavam ao mesmo tempo, uns defendendo, outros atacando. Ninguém ali tinha grandes interesses por poesia, mas por polêmica sim. Danilo era o mais efusivo. Gritava e colocava o dedo na cara dos opositores. Paulão permanecia sentado, quieto, observando tudo ao redor com o queixo cabeludo apoiado sobre as mãos. De repente levantou, caminhou na direção de Danilo e desferiu-lhe um soco na boca do estômago. Silêncio súbito e absoluto. A única coisa que podia se ouvir eram os gemidos fracos de Danilo arqueado no chão. Paulão olhou na direção de Felipe, que continuava estático na mesma posição desde que entrara.

- E você?! - perguntou Paulão.

Felipe ergueu as mãos espalmadas como quem diz: "Não fiz nada, sou frouxo, não precisa me matar".

- Apaga essa merda do quadro! - ordenou.

Felipe caminhou até a lousa num passo lento, resignado, de viúva que segue cortejo fúnebre. Tomou o apagador e passou-o sobre aquelas frases que conhecia tão bem. Lembrava da escolha de cada palavra, preposição, vírgula, quebra de linha. Podia escrevê-las de cabeça. Podia escrever um livro sobre cada uma delas. Mas apagou. E nunca mais voltou a escrever.

3 comentários:

Raphael Rap disse...

Só pq o cara era frouxo parou de escrever? Anti-herói de merda heheheheheeheh

Adriana Gehlen disse...

sei lá. odeio quadros, todos os tipos de quadros possíveis.

suzana_rebeca disse...

Vários e vários e vários porquês...