Verde-Musgo

Recolocou o Dom Quixote de capa dura verde-musgo no lugar certo, que era junto aos demais clássicos verde-musgo que enfeitavam a estante e que jamais lera, e não ali, jogado no sofá, como o encontrava todos os domingos depois que Rosana ia embora; o livro no sofá, aquele ultraje, lembrança do sem-número de vezes que insistiu para que levasse a porra do livro pra casa duma vez. Mas Rosana insistia em permanecer ali, esparramada no sofá, no seu sofá, lendo durante horas e horas naquele silêncio acintoso, quebrado apenas pelas risadas esporádicas que pareciam espirros de criança, intercalando longos momentos duma respiração pesada e doída.

Este era o saldo de um relacionamento que apresentava a mesma temperatura fosse qual fosse a estação do ano: ela lendo Dom Quixote no sofá da sala; ele no computador, alimentando janelinhas de bate-papo que piscavam, pulsavam, urgiam; todas carregadas do mistério, da excitação, da completude que jamais viria daquela mulher verde-musgo. Entre sala e quarto, um oceano, separando povos, formando em cada extremidade culturas, línguas, moedas; o que no quarto se mostrava pulsante, na sala esmaecia, adquiria os tons desbotados da pele de Rosana, a insipidez de seu sorriso simétrico, a candura de suas feições enjoativas; ao transpor os umbrais que separavam os cômodos, via-se debaixo das luzes mornas da vida real, que expunham o ridículo de suas ereções sob a bandeja do teclado. Passava pela sala à toda, o pescoço rijo, mantendo a cozinha sempre diante dos olhos, para não correr o risco de vê-la, aquele corpo estranho que se apossara da sala, do sofá, dos livros que não deviam ter outra função que não enfeitar a estante.

Quanto mais olhava praquele rosto tão familiar, mais difícil era reconhecê-lo – a fisionomia lhe escapava; o nariz, a boca, os olhos, pareciam traços dum amor do passado, de vidas passadas; uma memória genética, gravada de fato nas células, mas sem afeto algum.

Os fins de domingo, única lacuna que tinha para si, o lapso de tempo espremido entre Rosana e a hora do trabalho que já se aproximava, eram preenchidos por uma nostalgia imprecisa, uma espécie de inventário emocional que não encontrava bens a declarar; nada além daquele amor embolorado que carregava na carne feito uma invalidez.

Terminava jogado no sofá, como celebrasse a retomada do território, lembrando dos amores de infância que deixara escapar por simples inanição, pela incapacidade de reconhecer para si mesmo que amava a priminha de segundo grau com quem passava os carnavais em família na casa de praia. Agora, décadas depois, reinterpretava os sinais que à época lhe pareciam tão nebulosos, tão indecifráveis, mas que, fossem eles mais didáticos, destruiriam por completo aquele charminho bruto, o sofisticado denguinho de menina, aquele abismo de densas trevas que não exigia dele mais que um passo, um pequeno passo, para engolí-lo, mastigá-lo e cuspí-lo uma outra coisa: um alguém experimentado nos mistérios que a mente simplória do menino não é capaz de imaginar, mas para os quais a menina já quer conduzir pela mão.

Imaginou os filhos cândidos, desbotados e insípidos que teria com Rosana, todos aleijados do desejo, da chama, e para os quais não teria absolutamente nada a ensinar, pois quando o abismo lhe chamou à beira da praia, quando os adultos voltaram para casa e se viu sozinho com ela, o crepúsculo se desfazendo em manchas púrpuras por sobre o mar sonolento, as nuvens cinzentas orquestrando o golpe final no dia que agonizava, e viu aqueles olhos grandes e negros fixos nos seus, e os lábios zombeteiros disparando a pergunta fatal “já beijou?”, teve medo, sentiu os dedos dos pés queimando nos chinelos de borracha, o calor subindo pelas pernas, braços, ventre, ganhando o peito, o coração crispando, rompendo, tão quente era o sangue; viu-se pequeno, sozinho, perdido num mundo de trevas e mistérios profundos; e preferiu bancar o machinho, dando de ombros, fingindo não perceber que aqueles olhos chacoalhavam sua alma, embotavam seus sentidos virginais, condenavam-no à perdição eterna.

Dormiu no sofá.

2 comentários:

Raphael Rap disse...

Creio que a falta de comentários por aqui é justamente pela falta do que falar a não ser parabéns pela bela narrativa psicológica.

Adriana Gehlen disse...

é, concordo com o Raphael.

adorei.