Entranhas

Era sonho, ela sabia. Mas sentiu o desespero que só se pode sentir acordado. A filha se desfazendo em lágrimas: “Me largou, mãe! E grávida! Grávida!”. Abraçava a coitada, acariciava o barrigão de sete meses: “A mãe avisou. Não se deixa de ouvir a mãe”.

Acordou com a respiração obstruída, um aperto no peito. Encheu os pulmões a muito custo e soltou uma lufada de ar pesada, grave. Sob os roncos do marido, pulou da cama, pousou os pés nos chinelinhos que dormiam ali do lado e seguiu arrastando-os até a cozinha, onde serviu-se dum copo d’água fria. Não terminou de beber. O aperto não dava trégua, seguia castigando suas têmporas, seu esôfago, suas pernas, que latejavam, tremiam.

Ajoelhou-se perante o sofá, o rosto enterrado no assento, os braços circundando a cabeça, as mãos crispadas: implorou aos céus que livrassem a filha daquele homem canhestro e desprovido de apelos que, sabe lá por intermédio de que mandingas, levou embora a guria que ainda ontem pedalava seu velotrol cor de rosa pelo quintal. Precisava fazê-la entender que sair de casa, abandonar a família por uma aventura, fosse com quem fosse, ainda mais com esse!, era uma violência das mais cruéis contra o coração duma mãe; e que, desde a primeira vez em que vira aquele rosto petulante, previra - com o mesmo instinto com que mães salvam filhos desde tempos imemoriais - que não se tratava de alguém confiável. Ninguém era, aliás. A filha, para muitos, sabia, não passava duma moça de vozinha enjoada, exageradamente simpática, que carecia de dureza no trato para ganhar alguma solidez moral. Mas praquele homenzinho hediondo, sua menina não passava de carne para consumo imediato – seios, coxas e nádegas compradas a quilo no açougue, onde não se pergunta pela história ou família do animal abatido.

“Deixa quebrar a cara”, dizia o pai, com o rosto matizado pelo verde dos gramados da tevê. As irmãs não mediam as palavras: “Vagabunda. Sempre foi”. E a mãe corria do quarto pra sala, da sala pro quarto, procurando quem lhe desse ouvidos; em vão, posto que era mãe e estava sozinha na gestação de suas agonias. Ninguém tomava parte de sua dor, de seu calvário, muito menos ela que fingia, e na certa fingia, ser feliz com aquele demônio, como se fosse possível.

- Alô. – disse a voz do outro lado da linha.

Um arrepio lhe percorreu as vértebras de alto a baixo. Aquela voz grotesca, apática, inconfundível. Sabia que corria o risco de ouvi-la ligando assim, no meio da noite, mas resolveu apostar que a filha atenderia. Desligou. Não aceitava trocar uma palavra que fosse com aquele homem.

Pouco depois, o telefone tocou de volta.

- Mãe, já falei pra não desligar na cara do meu marido!

Marido. E essa agora?! Sete anos de namoro no sofá da sala, debaixo do olhar atento de pais, tios e primos; aos quais seguiram-se dois anos de noivado casto, que teve como maior pecado os beijos que vez por outra se permitia receber no lóbulo da orelha; casou de branco na igreja, com todas as bênçãos celestes existentes e que ainda se hão de impetrar; padeceu durante décadas as aflições dum cotidiano monocromático que pouco a pouco tingiu de cinza o jovenzinho esbelto que lhe beijava as orelhas, transformando-o num buda de louça que nada fazia além de gritar, brigar e roncar; tudo isso para ouvir uma pirralha chamar o primeiro malandro que achou na esquina de “marido”.

- A mãe sonhou com você, filha.
- Não quero nem ouvir.
- Esse daí te largava. Com barrigão e tudo.
- Ah, mãe! Faça-me o favor!
- É Deus avisando, filha.

Tempos depois, voltando do mercado, avistou um carro vermelho estacionado no portão. Nunca vira o tal carro, mas tinha certeza de que a filha viera nele. Faro, talvez, mas ela sabia. Apertou o passo. Correu. Mas antes que alcançasse ao portão, saíram dele o pai e ela, a filha. Estavam abraçados e riam, mas fecharam o rosto quando a viram.

- Entra, entra. Vou passar um cafezinho pra gente.
- Não, mãe. Era coisa rápida.

Quis argumentar, implorar para que ficasse um cadinho que fosse, mas a filha a abraçou forte, tão forte, tão forte que sentiu os olhos marejarem. Saboreou aqueles braços, até ontem tão curtos, mas que agora lhe envolviam por inteira e ainda sobrava espaço, os dedos magros apertando suas costas por sobre a blusa de viscose, o perfume de flor, os cachos do cabelo lhe tapando a visão feito persianas, enterrada que estava naquele pescoço branco e cheio de pintas, cujas posições trazia decoradas na memória como fossem constelações, pois ficava admirando aquelas pintas sempre que a filha desmaiava de sono em seu colo e vez por outra ligava alguns pontos com hidrocor, só para vê-la acordar irritada – zanga de criança, dessas que logo passa, uma delícia –, para depois cair na gargalhada e começar ela própria a ligar os pontinhos naquelas pintas e descobrir mais e mais constelações que trazia no pescoço.

A filha entrou no carro, o tal marido esperando ao volante. O carro arrancou, não demorando a desaparecer no fim da rua. A mãe permaneceu ali, observando o horizonte que reassumia lentamente a paleta de cores habitual.

- Vamos, vamos. Entra. – alguém disse.

Encontrou todos os demais reunidos na sala. Calados, solenes. Ali tinha coisa.

- Melhor falar duma vez. – disse uma das filhas.
- Quer matar ela do coração? – retrucou o pai.
- Ai, meu Deus! Aconteceu alguma coisa!? - exclamou  mãe, levando a mão ao peito.
- Aconteceu, mãe. O fim do mundo. - disse uma das filhas
- Fica quieta! - gritou o pai.
- Fala logo! -, disse a mãe.
- Ela está grávida. Pronto! Falei!

Desabou no sofá e se não houvesse sofá desabaria no chão e não faria a menor diferença pois o sofá lhe recebeu com a dureza duma sepultura.

- E já que você não aceita o rapaz, eles vão se mudar pra São Paulo e ter o bebê perto da família dele.

Permaneceu ali, caquinhos no sofá. Não ouvia mais nada. Provavelmente diziam coisas, mas ela não estava mais ali. Estava de novo no quintal, numa tarde morna de setembro, empurrando a traseira do velotrol cor de rosa, observando o balanço daquela cabecinha cacheada, as dobrinhas do pescoço cheio de pintas, o corpinho rechonchudo de bebê. Sentiu de novo aquele impulso louco de beijar, apertar, morder, de empurrá-la de volta ventre acima e senti-la uma vez mais dentro de si, misturada às suas entranhas.

8 comentários:

Nice disse...

Essa inspiração veio do post do Bunyan sobre adolescentes gravidas?
hsuahsuas
:P
vc escreve bem, cara o/
Mas estou sentindo falta de algo que tinhas nos textos mais antigos...

MaxReinert disse...

Nossa.... muito bom o texto. Narrativa excelente que prende do início ao fim!

Raphael Rap disse...

Sete meses depois a mãe perdeu a razão...



Muito bom cara. Belo texto e como definiu o Max... prende do início ao fim.

suzana_rebeca disse...

Até o último ponto.

D. Negrone disse...

Devastador como sempre. Tá virando rotina... bom bragaralho! Acompanhando sempre, visitante cativo!

[ ]'s

Unknown disse...

Ótimo texto. Incrível como sempre me surpreendo positivamente quando venho aqui ler.

Anônimo disse...

"Sete meses depois a mãe perdeu a razão..." Fiquei pensando, com o comentário do rap, se é perder a razão por ter ficado louca, vendo que sua "previsão" se concretizou. Ou por ter visto que não era bem assim...
É o bom de contos.

E eu gosto muito dos seus.

Besito.

Anônimo disse...

Será que só eu espero por contos novos? Duvido.