Reentrâncias

Aqueles olhos, cravados nos meus. E parecia que nada seria dito, que o silêncio permaneceria impenetrável, o ar espesso, ainda que ficássemos ali, sentados, por centenas de anos. Os olhos, duas bolas de gude, enormes, negros como a noite mais escura que já vi.

Fitou o copo de vodca, acariciou a superfície da bebida com a ponta do dedo, lambeu. Os lábios, saltados, vermelhos, pareciam preguiçosos; nada tinham para me dizer.

Ela estava particularmente bonita: um tomara-que-caia cor de uva, os cabelos escuros ondulando por sobre as costas, os ombros brancos, desnudos, a pele. Mas trazia nos olhos uma tristeza que me sufocava; eu queria fugir.

O bar estava quase vazio. Era quarta, chovia. Todos pareciam ter um bom motivo para estar ali, algo precisando ser afogado num copo de vodca. Eu não suportava mais aquilo, o garçom passando na nossa frente o tempo todo, como se aquele silêncio o angustiasse mais do que a mim. Alguma coisa precisava ser dita.

- Tem um cigarro? – ela perguntou.

Saquei o maço e lhe dei um. Ela não fumava, mas gostava do espetáculo, da fumaça dançando pelo ar. Acendeu, tragou, cuspiu uma baforada pro alto e ficou assistindo os círculos, suas reentrâncias.

- Se eu sumisse, desaparecesse... Seria uma alívio, né? – ela disse, preguiçosa, quase não ouvi.

Tragou o cigarro novamente, apertou os olhos.

- Digo, pra mim. Um alívio...
- Garçom! – gritei. Ele veio. – Outra vodca.

Eu sabia o que estava por vir; é como pular dum prédio, não tem volta.

– Deixa eu te dizer uma coisa... Na vida, – e mal comecei, me arrependi. – é preciso aprender a conviver com determinadas situações. Nem tudo é como a gente gostaria que fosse. Veja, essa busca frenética pela felicidade na qual todos estamos envolvidos, de um jeito ou de outro, não passa de ilusão; é a velha cenoura pendurada na frente do burro. Precisamos nos adaptar é à realidade.

Ela não respondeu. Estava farta daquilo. Seria melhor, mil vezes melhor, se tivesse berrado, xingado, mas me condenou tão somente a ouvir sua respiração, alto e forte, como se a ouvisse através dum estetoscópio. Os passos do garçom, as frases esparsas das mesas vizinhas, o samba cafona de fundo, o rangido da porta do banheiro a metros de distância; era uma massa de som turva, distante, sem sincronia com a imagem.

Buf! Uma pancada seca, um estrondo que me arrancou do transe. Era o garçom, baixando meu copo de vodca na mesa. Virei numa talagada só; não gosto de vodca, mas qualquer quentura era bem-vinda.

- Seus discursos... – ela começou, mas a voz perdeu força até sumir. Desistiu.

Foi quando ela, num gesto brusco, se levantou da mesa. Achei que fosse embora, parecia fora de si. Mas enlaçou o garçom pela cintura, pousou a cabeça em seu ombro e começou a dançar. Lentamente. Pra lá e pra cá... O garçom acompanhava os movimentos com respeito, um respeito quase fúnebre. Ela apertava os olhos, pressionava a cabeça contra o peito do garçom, enquanto a música se arrastava, os acordes pesados, as notas empurrando-se umas às outras, com preguiça de sair.

Nas mesas vizinhas, esqueceram-se dos assuntos sonolentos, dos copos mornos de cerveja, e todos passaram a assistir àquela dança ritualística. O bar inteiro, tomado pelo mesmo sentimento, a mesma dor.

Quando a música terminou, todos pareciam acordar de um sono profundo. Não se reconheciam mais como gente ordinária num bar de esquina, bebendo cerveja morna numa quarta-feira chuvosa. A cena os havia transportado.

- Vou indo. – ela disse.

Não me mexi. Não adiantava. Ela abriu a bolsa, tirou uma nota de dez, largou sobre a mesa e virou as costas, sem olhar para mim. Assistimos, o bar e eu, os passos em direção à rua, os cabelos pendulando por sobre os ombros desnudos, a pele branca, o tomara-que-caia violeta, os pés pisando firmes no ladrilho.

Permaneci sentado, olhando para a cadeira vazia à minha frente. O garçom me ofereceu outra dose de vodca. Não aceitei. Não gosto de vodca.

3 comentários:

Anônimo disse...

Voltarei sempre para lhe dar broncas e cobrar contos. Se todos saírem como esse, valerá a pena.

Não deixe de escrever. Ou melhor, de compartilhar seus escritos.



Beijos.

garotinha disse...

Caramba! Eu esqueço de como é bom ler seus contos, que droga!

"Tragou o cigarro novamente, apertou os olhos.

- Digo, pra mim. Um alívio... "

Eu juro pra você, que eu li (eu vi essa imagem e ouvi o som disso)

fjunior disse...

Tem um ar de "film noir"... imaginei o lugar, mal iluminado; ele vestido de malandro; talvez, numa Lapa antiga, embolorada de fumaça e sujeira.

Também ficou ótimo... gosto como vc enxugou o teu texto... isso tá pronto pra ser publicado... sem demagogias...