- Não acredito! – eu disse.
- Alice... – ele meio que sussurrou e abriu um baita sorriso, um sorriso delicioso.
- O que você tá fazendo aqui?
- Eu estudo aqui.
- Há quanto tempo?!
- Meia-hora.
Marcelo... Estudamos juntos no segundo grau. Foi cursar engenharia por causa dos pais. Eu fui estudar letras.
- Largou a engenharia? – perguntei.
- Vou fazer Letras.
- E teu pai?!
- Pirou...
- Não dava pra esperar menos.
- Só não precisava vender meu carro.
O pai do Marcelo era engenheiro. O avô do Marcelo era engenheiro. O bisavô não sei ao certo, mas também devia ser.
- Chope depois da aula?
- Tô cheia de trabalho pra fazer.
- Um chopinho não tira pedaço, vai.
- Outro dia, quem sabe.
Eu estava doida para pular no pescoço dele, mas segurei a onda. Éramos maduros e bem-resolvidos. Bastava deixar as coisas seguirem seu curso natural e a velha paixão adolescente reacenderia.
Eu cursava o quinto período enquanto ele acabara de entrar no primeiro, mas todo intervalo entre as aulas a gente aproveitava pra conversar. O papo simplesmente fluía, era automático. Sempre foi assim.
- Viu o filme que passou ontem? – ele perguntou.
- Detesto.
- Você não tem vergonha não?
- Vai dizer que você entende aquilo?
- Não é pra entender, é pra sentir.
- Viadinho!
Ele riu. Ele sempre ria.
- Hoje sai nosso chope? – perguntou Marcelo.
- Sabe que nem estou bebendo mais? Dei uma parada boa mesmo.
- Saquei.
É. Acho que errei a mão.
Algum tempo depois ele me apresentou uma colega de turma chamada Roberta. Bonita, a desgraçada!
- Gostando do curso? – perguntei.
- Não sabia que era tão pesado. - ela disse. - E olha que eu sempre li de tudo.
- O que você costuma ler?
- Código da Vinci, Caçador de Pipas...
Marcelo e eu passamos a adolescência debruçados sobre Faulkner, Blake, Hemingway, Proust etc. Detestávamos top ten de livraria. Marcelo percebeu minha dificuldade.
- Marley e Eu? - Marcelo perguntou.
- Não li. É bom? – disse Roberta.
- Chorei do início ao fim.
Não teve jeito: caí na gargalhada. Roberta estava prontinha pra fechar o tempo, mas Marcelo abriu malandramente o zíper da calça enquanto eu ria. Quando ele olhou pra baixo e fingiu estar sem graça, Roberta achou que era dele que eu ria e estampou um sorrisinho sem graça.
Roberta passou a nos fazer companhia nos intervalos das aulas. Tinha um rostinho arredondado, nariz fino, corpinho pequeno e tudo, tudo muito bem distribuído. Marcelo estava começando a ficar encantado. O jeito como ele sorria pra ela era o jeito que sorria pra mim há anos atrás. Eu descia da aula voando até o pátio para tentar pegá-los ainda por perto, mas eles já estavam caminhando, distantes, entretidos em altos papos. Não demorou pra ele me dar a notícia.
- Tô namorando com a Roberta. – ele disse. - Tudo bem pra você?
- Porque não estaria?
- Só perguntando.
- Vai fundo. Ela é... linda.
- Nunca tive uma mulher tão bonita.
- Ah, quanta gentileza...
- Não banque a criança! Se eu falo assim, abertamente, é porque me sinto à vontade com você.
- Relaxa. Tava brincando.
Acho que fui promovida àquele tipo de amiga sapatão com quem um homem comenta à vontade sobre a gostosura das outras mulheres.
- Esse tipo de beleza mexe com o ventre. – ele disse – Faz a gente lembrar que é de carne.
- Ela topa um ménage?
- Você bem que podia arrumar um gatão de academia.
- Pra ler O Código da Vinci em quadrinhos na cama pra ele dormir?
- Você não presta!
- Nunca disse que prestava.
Flauta encantada uma ova! Uma única bunda bem redonda e você arrasta todos os homens do mundo até o inferno.
Os dois tiveram que fazer um trabalho sobre Faulkner. Eu sabia mais sobre Faulkner que qualquer professor daquela faculdade e Marcelo sabia disso muito bem.
- Quebra essa, vai? Leva Roberta pra tua casa e faz um apanhado geral.
- Deixa comigo. Vou usar teatrinho de bonecos. Nunca falha.
- Pára com isso! Ela é mais esperta do que você imagina.
- Você não vai por quê? Tá com medo de mim?
- Vou ajudar nuns problemas do escritório. Já viu, né?
As tardes lá em casa eram animadas. Roberta era realmente mais esperta do que imaginava.; entendia tudo de bate-pronto. E ainda era um bocado divertida, cheia de histórias sobre namorados, paqueras, pretendentes, ficantes e toda essa mitologia da qual eu sempre ouvi falar. Quanto a mim, tive um namoradinho antes de Marcelo e nenhum depois.
- Sabe o Gilberto? – ela perguntou.
- O tronco mais largo do corpo docente.
- No final das aulas ele sempre vem e solta uma piadinha.
- Que tipo?
- Ontem ele me perguntou se eu tinha lido “Descrédito”.
- “Desonra”? Fala de um caso de professor com aluna, o professor é expulso, coisa e tal.
- Exato! Ele disse que acabou de ler esse livro e ficou com medo de que eu arruinasse a carreira dele.
- E você?
- Mandei ele ficar tranqüilo, que se depender de mim ele sempre vai ter a maldita carreira e esses livrinhos de putaria com alunas pra ler.
Tá aí. Gostei dela.
No fim das tardes a gente descia até o bar do Sr. Ferreira pra comprar umas cervejas. O bar parecia intocado pelo tempo, tinha um aspecto fétido, mas vendia a cerveja mais gelada das redondezas. Sr. Ferreira era um era sessentão asqueroso, sempre com um pano de prato imundo pendurado no ombro.
- Oi, Alice. – ele dizia.
- Oi, Sr. Ferreira. – eu respondia.
- Ooooooooooi, Roberta!
Velho descarado!
Na faculdade, Marcelo tomava conhecimento do avanço no trabalho sobre Faulkner e falava do retrocesso em seus problemas com o pai. Ele sempre dava um jeito de se livrar de Roberta e vinha desabafar comigo.
- O velho tá ficando doido. Todo dia, antes de eu vir pra faculdade, a gente quebra o pau.
- Você já passa as tardes inteiras no escritório. O que mais ele quer?
- Que eu me envolva mais, mais e mais. Nunca vai ser o bastante.
- Eu sei que é teu pai, mas dá vontade de mandar pra aquele lugar.
- Mandei ontem.
- E?
- Cortou minha mesada.
O pior ainda estava por vir.
- E o pior – ele disse – é que não tenho mais como curtir esse momento legal que tô vivendo com a Roberta.
- Como assim?
- Você sabe...
- Não.
- Essa coisa toda de... Ah, você sabe!
- Não.
- A gente quer se curtir, mas...
- Não entendo.
- Fiquei sem grana pro motel, caralho!
- Agora entendi.
- É importante pra mim. É o meu momento!
- Do ventre?
- Esquece! Você não tem como entender.
- Porque não sou gostosa?
- Quem tá pra baixo aqui sou eu, Ok? Espera tua vez.
- Ok.
Silêncio. Talvez fosse minha vez.
- Tua mãe ainda chega do trabalho tarde da noite?
- Ah, não! Minha casa não é motel, Marcelo.
- Pra gente era.
- Pra gente era!
Definitivamente, era minha vez. Virei as costas e fui embora.
À tarde, Roberta apareceu lá em casa como de costume. Pediu pra sentar no sofá da sala. Sentamos uma de frente pra outra. Ela tinha uma expressão compenetrada, digna. Parecia até aquelas cenas de novela onde acontecem as grandes revelações. Tenho certeza que ela viu muitas.
- Sei como você está se sentindo. – ela disse.
- Nossa! Como eu me sinto melhor!
- Marcelo me contou a respeito do ocorrido e fiquei deveras decepcionada.
Sim, ela estava falando de um jeito empolado.
- Ótimo! – eu disse – Veio perguntar o preço do pernoite?
- Vocês são tão amigos. Não entendo onde ele estava com a cabeça.
- Acho que o quarto da minha mãe vai cair como uma luva pra vocês!
- Alice!
- Queira me acompanhar, senhorita. Vou lhe mostrar o aposento onde poderão foder à vontade!
Me levantei. Ela continuou sentada. Paralisada.
- Não faz assim, Alice. Por favor. – ela disse.
Suas feições delicadas de menina se contraíram, os olhos castanho-claros tremulavam, as mãos pequenas apertando os joelhos dourados. Ela estava toda naquele momento, naquela posição, naquele olhar. Ela acreditava e era impossível não acreditar junto. Então entendi o maldito poder da beleza de nos sugar pra ela, de nos devorar.
- Você não tem culpa do que o idiota do Marcelo falou. – eu disse.
- Terminamos.
- Não! Isso não! É o momento dele! É o momento do, do... Do ventre, sei lá do quê!
Não sei o que me deu.
- Você não entende. Ele precisa!
- Calma, Alice!
- Cadê o telefone? Telefone! Telefone!
Fiquei descontrolada. Senti que Marcelo estava perdendo algo importante, algo que não era possível entender só com o intelecto. Liguei pra ele:
- Alice, não estou podendo falar...
- Vem pra cá agora!
- Tô no meio duma reunião.
- Roberta está em aqui em casa...
- Desliga esse telefone, Marcelo! - era a voz do pai, no fundo.
- Você tem meia-hora pra aparecer aqui. Senão eu mato essa piranha!
- Alice! - gritou Roberta.
- Escutou a voz dela? - perguntei. - Pois bem... Meia-hora!
E desliguei. Roberta estava aos prantos.
- Sossega, porra!
Marcelo chegou em poucos minutos. Estava pronto para encontrar uma cena de terror, com Roberta cortada em pequenos pedaços, guardados em vários potinhos tupperware.
- Você tem três horas pra baixar o facho dessa doida. – eu disse.
Beijei seus lábios, saí e tranquei a porta.
Só depois me dei conta de que não tinha pra onde ir. Fiquei parada em frente à porta, ouvindo as frases esparsas discussão que vazavam pela porta.
- Eu não vou transar com você aqui... nem em lugar nenhum! – ela gritava.
- (Marcelo respondeu algo que não consegui ouvir).
- Não encosta a mão e mim!
A maçaneta da porta se mexeu. Era Roberta tentando sair. Ouvi os passos de Marcelo se aproximando.
- Foi grosseiro da minha parte, eu sei – ele disse – mas é que já vejo Alice como uma irmã.
- A porta está trancada?
- Alice trancou.
- Alice! Abra essa porta!
Bum! Bum! Bum! Ela batia. Eu já estava pondo a chave na fechadura.
- Ela disse que volta daqui a três horas. – ele disse.
- Não acredito. Que coisa mais ridícula!
- Foi idéia dela. Você viu.
Discutiram mais um pouco. Depois baixaram a voz. Depois passaram a sussurrar. Depois não consegui escutar mais nada. Minha boa ação estava feita. Sentei com as costas apoiadas na porta, braços sobre os joelhos, cabeça pendendo dos ombros.
Perdi a idéia do tempo. Me senti patética. Chorei. Me senti ridícula por estar chorando. Me senti auto-indulgente. Me pus no lugar de Marcelo. Me pus no lugar de Roberta. O único lugar que não valia a pena era o meu. Imaginei os dois rolando no tapete da sala. Imaginei nós dois. Lembrei dos livros que li. Inúteis, no fim das contas, se nada podem contra esse tal ventre. Peguei no sono.
Quando acordei, vi que anoitecia. Bati na porta, abri e entrei pé ante pé. Roberta saiu do banheiro com os cabelos molhados. Baixou os olhos.
- Nossa! Que vergonha... – ela disse.
- Queria ver essa vergonha toda com as pernas abertas.
Ela riu.
- Obrigada. – ela disse - Por tudo...
- Qualquer mulher do mundo faria exatamente o mesmo no meu lugar.
- É verdade...
Para ironias, pelo menos, ela era completamente virgem.
Roberta resolveu ir embora. Encontrei Marcelo no meu quarto, deitado na cama, pelado, parcialmente coberto pelo lençol e com uma baita cara de satisfeito.
- Barriguinha cheia, bebê? – perguntei, passando a mão em seus cabelos.
- Senta aí.
- Oba! Segundo tempo?
- Tenho mais idade pra isso não.
- Viadinho.
- Você não existe, sabia?
- Tô começando a acreditar.
- Quer casar comigo?
- Quero casar com a Roberta.
- Põe um filme aí pra gente.
- Não sendo Antonioni...
Ficamos lá, assistindo um filminho italiano, tomando cerveja e jogando conversa fora, como nos velhos tempos.
E isso virou nossa rotina. Roberta ia lá pra casa à tarde, eu a ajudava em algum trabalho da faculdade, descíamos, comprávamos cervejas, conversávamos, ríamos. Marcelo chegava, eu saía, eles transavam, Roberta ia embora, eu voltava. Encontrava Marcelo deitado na cama com cara de satisfeito, conversávamos, ríamos e bebíamos cerveja até altas horas.
Foi assim até eu me formar. Depois comecei a trabalhar e a rotina acabou. Marcelo e eu continuamos nos falando. Ele terminou com Roberta assim que paramos de nos ver. Me pergunto quem foi a outra nessa relação.
dezembro
-
na praia
menstruada
quarto dia tem um momento em que tudo
Vaza
último suspiro
depois do terceiro, um hiato
parece que terminou
Dessa vez
menos tempo, m...
Há 11 meses
6 comentários:
fiquei pensando depois... acho que devia se chamar Ménage à trois...rs
a satisfação sexual com uma e a satisfação emocinal com a outra... há uma troca entre os três... no fim das contas as duas garotas gostam de estarem perto uma da outra...
Esse Marcelo era um cara de sorte, mas desperdiçou uma grande oportunidade de levar o ménage ao pé-da-letra. Ele poderia ter ficado "da carne a carne" e acabou optando pelo "do pó ao pó".
O.o
me pergunto que material inspirou essa historia
hsuahsuahs
=)****
escreve muito moço
Deus abençoe muito vc
e esse blog seja instrumento pra gloria dele
Vai tomar banho cara! Escreve bem demais heheheheh
O cara jogou o menagee-a-trois fora assim? Numa conversa jogada fora? heheehehe
É interessante que tem alguns relacionamentos que só duram realmente com base em outra pessoa... os papéis secundários na realidade são principais implicitamente...
jesus apaga a luz!
interessantíssimo.
ié!
mas, não ia deixar na minha cama, a não ser que me pagassem. aí sim são outros quinhentos...
Tou frustrada, eu queria que a Roberta ficasse com a alice. eheh
Muito bom
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