A Sublime Arte da Letargia

Anselmo, sentado em sua mesa de trabalho, observava pela janela os prédios do centro do Rio, seu matiz cinza, seus ângulos retos, suas formas impessoais. Eram três horas da tarde, faltavam duas para o fim do expediente. Alimentava a doce ilusão de que por muito gastar os prédios com os olhos, os ponteiros do relógio se apressariam e com eles a imprecisa engrenagem de condução dos tempos e momentos. Espiava os objetos à sua volta: o bastão de cola, os bloquinhos de recado, as canetas coloridas e a régua que despontava em meio delas. Já havia concluído a tarefa que haviam lhe deixado, mas não ousava dizer isto ao chefe para não receber mais trabalho como agradecimento por sua eficiência. Baixou os olhos, fitando a própria barriga. Como estava grande! Lembrou-se de todas as tentativas fracassadas de emagrecer. "Depende só de mim!", dizia-se nestas ocasiões. Mas como nenhum resultado aparecia no dia seguinte ao sacrifício de engolir um prato de salada, acabava dando-se por vencido e voltava aos velhos e condenáveis hábitos alimentares. Aliás, era assim em tudo mais. Prometia-se dia após dia, atrasado no ponto de ônibus, que dormiria cedo naquela noite, acordaria bem disposto e seria o primeiro a chegar ao trabalho. Mas, à noite, entretinha-se com alguma futilidade, como um jogo de computador do qual estava enjoado ou algum programa de TV que não lhe interessava, e ia dormir pelas tantas da madrugada, maldizendo-se a si e à sua sina: a de não ter controle sobre as próprias vontades.

Tédio! O pior dos sentimentos do homem, pois até o sofrimento prefere-se a ele, não sendo outra coisa senão a agonia da alma que se esvai por nada. Anselmo sentia-se fortemente atado à cadeira giratória; sua liberdade física contrastava com o aprisionamento que sentia dentro de si.

O telefone tocou. Viu-se de repente esperançoso ao imaginar que alguém no mundo precisava lher falar, esperança esta que desapareceu assim que a voz esganiçada da ex-mulher começou a melhtralhá-lo com queixas sobre o filho dos dois, dizendo que o garoto necessitava de um pai de verdade, presente, de voz ativa e blá-blá-blá. As reclamações constantes remontavam à época do casamento falido e a resignação constante de Anselmo sempre tirou a mulher do sério. Desta vez não foi diferente, ouviu tudo calado. Foram muitas as ofensas feitas por ela ao telefone, mas que não foram contudo absorvidos, pois em situações desagradáveis como esta a mente de Anselmo armava-se de um estado letárgico que abstraía tudo. E assim desligaram, ela irritada, ele mais entediado que antes.

Levantou-se e moveu lentamente seu corpo pesado na direção ao banheiro. No caminho, passou pela secretária. Fitou seu belo par de pernas. Desviou, porém, afetadamente o olhar ao perceber que ela lhe dirigia um cumprimento seco. Respondeu com não mais que um discreto aceno de cabeça. No lavabo lavou o rosto, apoiou os braços sobre a pia e observou a própria imagem no espelho. "Derrotado!", disse a si mesmo em voz alta, erguendo o dedo indicador. A porta do banheiro abriu-se, tendo dado tempo suficiente para que o colega de trabalho Marcelo presenciasse aquele momento de destempero.

- O que está acontecendo, meu camarada? - perguntou Marcelo em tom zombeteiro.
- Hé-hé. Estava apenas lembrando... de um filme... que eu vi. - respondeu gaguejando.

Saiu a todo vapor e, tentando fugir logo daquele constrangimento, abriu a porta com ímpeto, sem dar-se conta de que o Sr. Soares, chefe do setor, aproximava-se pelo outro lado. A porta acertou-lhe em cheio o nariz, derrubando seus óculos no chão e deixando-o tonto por alguns instantes.

- Mil perdões, senhor. Eu estava meio distraído... - começou Anselmo.
- Eu percebi! - cortou o chefe, recompondo-se - Mas deixe isso pra lá. A quantas anda aquele relatório que lhe pedi?
- Já está quase pronto.
- E quando deixará de estar "quase"?
- Hoje, no final do dia, mando ele para o seu e-mail.
- Já estamos no final do dia. - disse Sr. Soares, consultando o belo relógio prateado no pulso - Isso significa que somente amanhã vou poder consultá-lo. Mas não faz mal, o importante é que de manhã cedo (Se é que você chegará cedo amanhã) comece logo a confeccionar aquele outro relatório do qual lhe falei e que ele fique pronto à tarde.
- Sr. Soares, eu acho que não dá tempo de...
- Peça ajuda ao Marcelo, que é mestre nessa arte dos relatórios. Ah, olha ele aí - e apontou para o citado colega, saindo do banheiro. - Meu caro Marcelo, você pode dar uma força para o Anselmo amanhã num relatório que eu pedi?
- Claro. Sem problemas - respondeu Marcelo solicitamente.
- Acho que não é necessário. - disse Anselmo - Veja bem, eu...
- Mas você acabou de me dizer que não consegue. - interrompeu Sr. Soares - É melhor pedir ajuda a um colega mais capacitado do que não concluir a tarefa no tempo devido. Não é vergonha nenhuma.
- Com certeza! - exclamou Marcelo. - Amanhã a gente senta junto e detona esse relatório rapidinho.

Ambos despediram-se de Anselmo antes que este pronunciasse palavra. Odiava Marcelo por este poder de atrair atenção sobre qualidades que nem mesmo possuía. Via-se infinitamente mais competente que o colega na "arte dos relatórios", tanto que concluíra na metade do prazo o pedido do chefe, não havendo-o entregue apenas por langor. Das vezes que dividira tarefas com ele, a divisão fora: Anselmo ficara com o trabalho e Marcelo com o crédito. Não que Marcelo lembrasse um orador do areópago ateniense, mas comparado à articulação de Anselmo - seu olhar perdido, que aparentava buscar abrigo dos olhos do interlocutor, seu falar incerto que punha em dúvida quem ouvia-lhe falar sobre suas mais profundas convicções - comparado a tudo isso Marcelo era o próprio Mercúrio.

No dia seguinte, exibindo no rosto o inchaço de ter despertado há pouco, Anselmo, atrasado como sempre, chegou a sua mesa de trabalho. Marcelo, como de costume, havia chegado há mais de uma hora e estava navegando em seus sites de mergulho, enquanto degustava um grande copo de café.

- Fala, Anselmo! Hoje a gente detona aquele relatório, hein? Assim que eu terminar isso que tô fazendo aqui, sento lá do seu lado pra te ajudar. - disse Marcelo animadamente, esticando o pescoço sobre o monitor.
- Sem problemas. - foi a resposta lacônica de Anselmo.

Anselmo sentiu seu ventre inflamar, pois sabia que Marcelo não se levantaria dali até o meio-dia, quando finalmente iria se aproximar, perguntar como o colega estava se saindo e avisar que depois do almoço eles "detonariam" o relatório. E no fim do expediente, tão logo Sr. Soares chegasse, Marcelo saltaria diante dele e, exibindo propositadamente seu palavreado técnico ininteligível, discorreria sobre mil dificuldades do relatório que ele sequer olhara e como eles - confiando plenamente que Anselmo concluíra a tarefa - haviam superado todas elas. Esta era sua tática para obter o reconhecimento do chefe sem mover uma palha e tinha em Anselmo a vítima perfeita, visto que este nunca esboçava reação ao vampirismo do colega. Mas desta vez Anselmo estava determinado a combater o algoz com todas as suas forças, que não eram muitas, ele sabia.

O relógio marcava dois minutos para o fim do expediente quando Sr. Soares despontou no corredor. Marcelo pulou imediatamente de sua cadeira e posicionou-se ao lado de Anselmo. Estava armado o bote. O chefe nem teve tempo de cumprir seu papel de cobrador de resultados, pois Marcelo não quis perder o deleite de desfiar seu vocabulário nebuloso com se fosse um rosário. - E então, – concluiu Marcelo – resolvido o problema dos vínculos dinâmicos entre as tabelas ficou fácil concatenar as informações resultando na visualização pretendida para os dados brutos. - Oh! Muito bom, Marcelo. – admirou-se Sr. Soares. – Você nunca falha na arte dos relatórios.

Sr. Soares pediu para Anselmo mostrar o resultado na tela e para sua surpresa o relatório exibia centenas de linhas repetidas e várias informações inconsistentes. Anselmo, seco, disparou:

- É, parece que ainda existe um probleminha no vínculo entre as tabelas...
- Mas não é possível! – disse Sr. Soares - Preciso enviar este relatório para a sede amanhã antes do almoço. Como isso foi acontecer, Marcelo?
- Não se preocupe, Sr. Soares. – respondeu Marcelo – A gente vai dar um jeito nisso.
- Claro que vão! E ainda hoje! – sentenciou o chefe, se retirando.

Anselmo sabia exatamente onde estava o problema e o havia plantado ali de propósito. Estava cansado de servir de degrau para o colega malandro.

- Merda! Logo hoje que eu ia sair com a Renatinha! Vamos Anselmo, conserta logo esse troço. – disse Marcelo, implorando.
- Não faço idéia de onde esteja o problema. - respondeu Anselmo - Fiz do mesmo jeito de sempre e nunca tinha dado isso.
- Era só o que me faltava! – disse Marcelo. Pegou o celular e discou. – Alô, Renata? Oi, sou eu. Deu um probleminha aqui no trabalho daqueles que só eu posso resolver. É... É... Não! Não tô cancelando nada não. Vai indo pro bar que eu te encontro lá. Ora... Pode ir! Confie em mim. – e desligou.

Marcelo olhava para a tela do computador como se olhasse para o alfaberto cirílico. Anselmo, que nada sabia sobre o encontro do colega, fazia um esforço sobrehumano para conter sua satisfação e disfarçá-la de fastio e agravo. Sentia-se agraciado pelos deuses.

Conforme o tempo ia passando, Marcelo ficava mais irritado. Seu telefone tocava de dez em dez minutos. A voz feminina do outro lado da linha foi ficando cada vez mais audível e esganiçada. Anselmo já conseguia entender frases inteiras com a ajuda do silêncio que se instaurava com o avançar da noite no Centro da Cidade. Já eram quase dez.

- Merda! Ela se mandou. – disse Marcelo, fechando seu celular último tipo – E ainda fez questão de dizer que nunca mais vai marcar nada comigo.

Dali em diante Anselmo divertiu-se com uma sucessão de tentativas estúpidas de Marcelo para resolver o problema. Este último realmente não tinha idéia do que fazia. Anselmo se perguntava de quantas vítimas aquele vampiro sugava o sangue para manter seu emprego por tanto tempo e com tanto prestígio. A arte dos relatórios! Era realmente algo bonito de se ver.

O dia amanheceu. Anselmo havia dormido em sua cadeira. Apenas baixara a cabeça sobre o peito e cochilara sabe-se lá por quanto tempo. Seu pescoço, ombros e coluna doíam. Encontrou Marcelo com os olhos vermelhos fixos no monitor. Era triste. Em seu rosto abatido lia-se um misto de desespero e estupefação. Parecia não acreditar que sua carreira cuidadosamente construída, como que confeccionada num tear, desmoronasse diante dele assim, numa única tacada. Faltava tão pouco para ele ser promovido a assistente gerencial e depois disso é que não precisaria mesmo saber criar relatórios. Então Sr. Soares chegou.
- Ai, meu Deus! – exclamou o chefe, levando as mãos à testa – Viraram a noite e pela cara de vocês não conseguiram nada. Se este relatório não estiver na minha mesa até meio-dia, vocês vão ter sérios problemas!

Anselmo estava excitadíssimo. Tinha tudo planejado em sua mente. Quando faltassem apenas dez minutos para o fim do prazo, diria a Marcelo que iria ao banheiro e então irromperia sala do chefe adentro anunciando a solução definitiva para o problema, sem dar ao colega a chance de colher uma migalha sequer dos louros da vitória. E quando faltavam pouco mais de dez minutos, levantou-se e foi ao banheiro. Ficou um bom tempo lá, jogando água fria no rosto. Olhou-se no espelho.
- É hoje! – disse, tascando um beijo no ar para própria imagem refletida.
Ao voltar, notou que Sr. Soares não estava em sua sala. No caminho de volta, viu que João, funcionário mediano - mas um gênio dos relatórios se comparado a Marcelo -, estava sentado em seu computador. Sr. Soares e Marcelo estavam com ele e falavam efusivamente. Anselmo gelou. Foi quando o chefe o avistou, fez um largo sinal com o braço para que se aproximasse e disse em alto e bom som, para que todos escutassem:

- Anselmo! Não é possível. Vocês viraram a noite por causa de um errinho idiota que o João resolveu em dois minutos?! Eu não acredito! Pra minha sala, os dois, agora!

Anselmo sabia muito bem o que aconteceria. Não, não seria demitido. Mas seria obrigado a ouvir toda sorte de críticas absolutamente infundadas sobre si. Veria aquele homem, que só passava por ele como um raio, comportando-se como o legítimo legislador de sua vida, o autêntico senhor de seus dias; abanando a cabeça, resignado, como se suportá-lo fosse um fardo vindo dos céus; reprovando cada detalhe de seu comportamento, muitos inventados ali, de improviso. Mas o pior de tudo era receber sua misericórdia. Ser obrigado a engolir silenciosamente sua atitude pretensamente magnânima, que outorga um perdão claramente imerecido, simplesmente por participar de uma natureza superior. Aquilo era pior do que ver Marcelo levando o crédito. Pior que ouvir sua ex-mulher reclamar ao telefone. Pior que observar os ponteiros inflexíveis do relógio. Pior que tudo, tudo na vida. Mas Anselmo conseguiu abstrair, refugiando-se em seu estado letárgico. Era somente ali que se sentia bem.

5 comentários:

fjunior disse...

a estória é boa... mas eu preferiria que o gordo do anselmo tivesse virado a mesa... ter dado o golpe no Marcelo e ainda ter ido pra casa com a tal da Renatinha...rs

Nice disse...

Eu preferia que o anselmo largasse o emprego rs.
Isso eh uma historia,naum eh a vida real...

=)**
bejus rafa

Nice disse...

pensando melhor,
se fosse a vida real ele teria largado o emprego.

Nice disse...

ah.. sei la.
Anselmo sou eu rs.
Alselmo é voce.
Alselmo é todo mundo chateado com essa vida...

Raphael Rap disse...

Caramba cara, tu consegue prender a atenção da gente...

Anselmo como disse a vanice é realmente todos nós no refúgio dos pensamentos chamado letargia...