O Homem de Terno

Já estava acostumada às correntes daquele mar de rostos flutuantes ao seu redor e esfregava mecanicamente um panfleto no outro antes de estendê-lo a um transeunte, sem conseguir enxergar, entretanto, nenhuma lógica naquele procedimento. Em seus primeiros dias naquele trabalho, sentiu-se terrivelmente deprimida ao constatar que se tornava invisível, inexistente ao plantar-se na esquina da Rio Branco com Assembléia munida de seu bloquinho de panfletos onde lia-se "Dinheiro Rápido". Mas a depressão foi rapidamente substituída pelo ódio. Concluiu que os passantes que sequer miravam seu rosto para negar-lhe o recebimento de um panfleto gentilmente estendido só podiam fazê-lo por algum prazer sórdido. Transformou-se então numa máquina de panfletagem, estendendo os braços em movimentos curtos e precisos. Tudo que via era a imensa massa turva de feições que brotavam aleatoriamente diante dela. Vez por outra sentia náuseas.

Então viu um homem de terno caminhando em sua direção. Já devia ter passado por ali centenas de vezes, mas só agora ela o reparava. Seus olhos eram duas grandes bolas pretas de bilhar. Profundos e enigmáticos, como enormes buracos negros sugando tudo ao redor. Ficou fascinada por aqueles olhos. Esticou o braço o mais que pôde para entregar-lhe um panfleto, mas o homem não a percebeu. Não conseguiu mais tirar da cabeça a imagem daqueles olhos. Finalmente algo intrinsecamente vivo havia cruzado seu caminho.

No dia seguinte, por volta do mesmo horário, o homem de terno passou por ali novamente. Ela, porém, aguardava-o em grande estilo. O rosto maquiado, o decote generoso valorizando seu busto e o salto agulha que castigava suas pernas desde que os calçara eram os responsáveis pelo relativo sucesso que fazia na esquina. Seu colega de posto na panfletagem, um gaiato uns quinze anos mais velho, passara toda a manhã lhe dirigindo gracejos inconvenientes. Até mesmo alguns transeuntes substituíram seu habitual olhar indiferente por outro mais "humano". Porém, o homem de terno conversava entretido com um amigo e não virou o rosto em sua direção. Sua decepção foi tão palpável que seu colega de posto disparou de imediato:
- Então é por causa desse maluquinho de terno que tu veio embonecada desse jeito?
- Vem cá, tu é meu marido agora, é?! – respondeu, agressiva.
- Devia ser, mas tu é doida. Fica sonhando com o que não nunca vai ter.
- E tu lá tem idéia do que eu quero? – perguntou em tom imperioso, encerrando assim a discussão.

E a imagem daqueles dois lagos de negritude não lhe abandonava. Precisava, de uma forma ou de outra, estar sob a mira deles. Decidiu então tomar medidas extremas. No dia seguinte, quando o homem de terno passasse novamente, simularia um desmaio diante dele. Um olhar bastaria para devolver-lhe à vida e salvá-la do mecanicismo daquele mundo gélido. E lá vinha ele, vestindo um elegante terno cinza escuro, caminhando sozinho entre a multidão. Ao vê-lo cada vez mais perto, sentiu crescer dentro de si uma angústia incontrolável. Já não sabia mais se teria coragem de levar seu plano adiante. E o homem vinha em sua direção numa linha reta milagrosamente desobstruída. Sua pulsação disparou, um calor tórrido subiu-lhe ao rosto, sua visão escureceu e suas pernas bambearam. Contra a vontade, desabou no chão. Talvez o corpo tenha feito o que a alma não teve coragem. O homem de terno imediatamente correu em seu auxílio, pôs a mão por baixo de sua nuca e levantou-a do chão. O outro panfletista, por sua vez, empurrou grosseiramente o homem, como se ele cometesse uma grande indelicadeza ajudando a moça.
- Circulando, grã-fino! Circulando!
- Se precisar de alguma ajuda, me procura – respondeu o homem inabalado, entregando-lhe um elegante cartão de visitas.
- E desde quando eu preciso de ajuda pra cuidar de mulher minha?! – vociferou o panfletista.

Depois de recobrar a consciência, foi arrastando-se vagarosamente, apoiando-se no ombro do colega, até o supervisor dos panfletistas, que ficava na esquina da Presidente Vargas com Uruguaiana. Era lá que eles pegavam seus bloquinhos de panfleto pela manhã. Antes que ela tivesse tempo de responder ao supervisor, que indagava o motivo de sua expressão pálida, seu colega tomou-lhe a frente:
- Chefe, essa garota não pode ficar na Rio Branco não. Ali faz muito sol e a menina quase empacotou na minha frente.
- Mas que menina frouxa, hein?! Larga ela aí. Amanhã vejo outro posto pra ela. – respondeu o supervisor, indiferente.
- Não foi sol coisa nenhuma! Eu passei mal porque... – disse ela, tentando esboçar uma reação.
- Ssssh! Não me crie caso. Por muito menos já mandei garota frouxa pra rua. – cortou o supervisor.
Se tivesse forças, agrediria seu agora ex-colega de posto ali mesmo, sem cerimônias, mesmo sabendo que perderia o único trabalho que conseguira em meses de árdua procura. Seria merecido e acima de tudo prazeroso, mas sentiu a vista escurecer novamente e procurou se acalmar.

No outro dia, não conseguindo conter-se ao ver o relógio marcar o horário em que o homem de terno costumava passar, abandonou seu novo posto e seguiu em desabalada carreira para a Rio Branco, sabendo que não podia cruzar com o supervisor em sua costumeira ronda pelos postos, pois seria caso de demissão imediata. Mas imediato era seu desespero e por isso corria, suava e gemia. Avistou entre a multidão a nuca de uma cabeça careca que ela conhecia muito bem, era seu supervisor em seu habitual passo de cágado. Não podia ultrapassá-lo, mas também não podia acompanhar seu passo lento. De impulso, entrou numa galeria comercial que cortava um dos prédios. Saiu do outro lado, correndo feito uma louca. Quando chegou, o homem de terno estava dobrando a esquina. Correu até ele, puxou-lhe pelo braço e pousou um panfleto em sua mão. O homem reconheceu-a, fez menção de dizer algo mas não teve tempo, pois ela voltara a correr alucinadamente para voltar a seu posto. O homem observou o panfleto e viu algo no verso escrito a lápis, numa caligrafia insegura, infantil. Era um nome, apenas um nome, o nome dela, e só.

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