Metamorfoseado

Acordou se sentindo um merda. Não tinha motivo aparente, mas sentia até o gosto de merda na boca. Esfregou a testa suada com as costas da mão e levantou cambaleante. Segundo Kafka, o momento mais perigoso do dia é o acordar. Pois Antônio acordou metamorfoseado numa grande montanha de fezes secas, desbotadas e de cheiro enjoativo e nauseante. Mas ele lembrou que não tinha tempo para curtir sua deprêzinha matinal. Tinha que enfiar-se numa calça de microfibra barata e ir para o trabalho. Minutos depois, devidamente vestido como um trabalhador, rumou para o ponto do ônibus relembrando todas as pessoas que conseguiram viver sem ele. Colegas de escola, de faculdade, de outros empregos, ex-namoradas, ex-vizinhos, ex-melhores-amigos... Desfilavam diante dele suas esposas, maridos, filhos, novos-melhores-amigos, cachorros, gatos, amantes...

Mas não era assim com todo mundo? A vida não era um gigantesco acelerador de partículas chocando pessoas umas contra as outras e espalhando-as por toda sua extensão monstruosa? Era evidente que sim. Mas o que incomodava Antônio era não deixar nenhuma marca. Sentia-se um espectro passeando por um mundo ao qual não pertencia. Vez por outra imaginava a própria morte. Seu corpo descendo terra abaixo num caixão, os rostos condoídos daqueles que solidariamente compareceriam àquela celebração da comunhão de todos os homens na morte. E dois dias depois, o que lhes aconteceria? No máximo, uma sensação estranha, desconfortável, de um não-sei-o-quê que ficou pra trás. Talvez uma conta que esqueceu-se de pagar, uma lâmpada deixada ligada, uma boca do fogão esquecida acesa. Então se lembrariam que alguém morreu, mas por efeito do terror ritualístico de um corpo entregue aos vermes diante dos vivos. Nada mais que isso.

Pegou o ônibus. Sentou-se observando aqueles rostos lobotomizados. Viu-se neles. Será que depressão era aquilo? Não, não era. Depressão era para consciências profundas que se deparavam com a transitoriedade da vida. Antônio só se sentia um merda e qualquer coisa além disso soava para ele como pura pretensão. Chegou ao trabalho e uma vez lá conversou, riu e brincou como todos ali. Mas uma reminiscência amarga repousava em sua boca. Sabia que um dia seria demitido ou se demitiria e aqueles que hoje agiam como participantes permanentes de sua vida sequer se lembrariam da cor do carpete onde pisavam se perguntados. Não tinha nada a dizer-lhes que pudesse afixá-los a si. Não tinha conselhos profundos para dar, reflexões edificantes para compartilhar ou sentimentos calorosos que lhes fossem dedicados. Nada.

À noite, voltou pra casa. Abriu a geladeira, pegou alface, tomate, pepino e fez uma salada. Requentou a carne assada do dia anterior e jantou assistindo Jornal Nacional. Chorou. Olhava para o apresentador e não conseguia conter as lágrimas quentes que desciam. Chorava, não por si próprio, mas pelo apresentador. Não era pena, nem compaixão, nem um choro misericordioso, como se lhe fosse superior, mas era algum tipo de comunhão, como se tivesse certeza que o apresentador também chorava. Cansou de chorar e desligou a TV. Deitou na cama, fitou o teto e refletiu. Chegou à conclusão de que toda aquela veadagem não ia chegar a lugar nenhum. Resolveu dormir, pra ver se acordava metamorfoseado em algo melhor no dia seguinte.

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