A Janela

Anselmo subiu ao ônibus com seus habituais ombros protraídos e coluna arqueada, que tanto davam-lhe ares de vencido. Com aborrecido esforço projetou seu pesado corpo para dentro do carro. Seu semblante caído, fruto do cedo despertar, corroborava com esta negativa impressão. “Bom dia”, disse ao cobrador, entregando-lhe o dinheiro. O homem estendeu a mão mecanicamente pegando as cédulas, sem fazer caso do cumprimento recebido. O mundo apresentava-se hostil a Anselmo, que assim o sentia diariamente. Girou a roleta e caminhou coletivo adentro, que não estava lotado como de costume, tendo inclusive alguns lugares vagos às janelas, o que alegrou-lhe sobremaneira. Percebeu então num destes bancos um conhecido seu, Paulo, morador do mesmo bairro, com quem nunca tivera contato próximo, havendo trocado apenas rápidos cumprimentos.

Aquela visão causou-lhe grande desconforto, por sentir-se moralmente obrigado a trocar sua confortável posição na janela para sentar-se ao lado do conhecido, cumprindo assim sua função social. O homem percebeu-lhe a presença e fitou os olhos nos seus. Sorriu-lhe este com uma simpatia forçada, retomando imediatamente o agravo com que olhava pela janela, fazendo Anselmo sentir-se livre para sentar-se onde bem quisesse. Deu um passo vigoroso, já procurando com os olhos qual seria o melhor lugar para a viagem, quando notou a cabeça de Paulo voltar-se para ele, como que convidando-o a fazer-lhe companhia. Este movimento não passou de uma impressão, já que não estava Anselmo com olhos voltados para o homem. “É agora ou nunca”, pensou. Caso optasse por sentar-se ali, junto a Paulo, estaria fadado a ouvir-lhe potencias lamúrias, piadas sem graça ou desalinhos de interesse. Não que soubesse serem assim as conversas de Paulo, posto que nunca haviam travado diálogo, mas o risco existia, e isso era um fato.

Num ônibus como aquele, sempre abarrotado de pessoas além de sua capacidade, divide-se a sociedade em três castas bem distintas, a saber: os que sentam-se à janela, tendo todo o horizonte diante do nariz, os que sentam-se ao corredor, tendo o refrigério do assento, mas suportando também o incômodo dos passageiros de pé que, espremidos, roçam-lhes nos ombros, sendo estes, portanto, a derradeira e mais desprezível categoria. Acostumado a viajar na última, vislumbrava Anselmo a rara oportunidade de ingressar na primeira. Sentado à janela pode-se dormir repousando a cabeça no vidro, e não no ombro do passageiro ao lado, como fazem os da segunda casta; pode-se pigarrear chamando a atenção do vizinho para que este dê mais espaço; pode-se observar com a devida distância o aglomerado de indivíduos que se acotovelam em pé no corredor do veículo. Enfim, todas as regalias que uma casta superior pode obter da inferior. Anselmo era conhecedor deste apartheid velado que regia o transporte das massas suburbanas para os centros de produção e comércio.

Decidiu ignorar sumariamente a presença do conhecido e seguir a passos largos para o meio do veículo, onde sentou-se num confortável banco diante de uma grande e vistosa janela. Abriu o livro que trazia debaixo do braço e pôs-se a lê-lo. Intitulava-se “Aprenda Não-sei-o-quê em 24 horas”. Lia-o na tentativa de obter reconhecimento no trabalho e, quem sabe, uma promoção. “Onde já se viu!? Deixar de estudar pra ficar batendo papo. Quanto mais rápido eu terminar este livro, melhor.”, justificava-se a não sei quem. Seguiu-se a viagem e esqueceu Anselmo do ocorrido, entretendo-se com seu livro e posteriormente dormindo a bom dormir, de boca escancarada e soltando roncos altos e esporádicos, que mais pareciam rosnados.

Acordou sobressaltado por um burburinho que percorria todo o coletivo. Alguém parecia discursar com ímpeto, como o fazem os evangelistas nos trens. Estranhou, já que nunca vira coisa semelhante naquele ônibus. Os passageiros cochichavam entre si sobre o que dizia o homem, alguns lhe ameaçavam para que fizesse silêncio. Anselmo apurou os ouvidos para entender o que dizia o discursador. Milagrosamente, a platéia fez silêncio, como que enternecida por suas palavras. Dizia ele em alta voz:
- ... e eis que este mundo me cansou! Como pode a existência ser apenas isso? Não foi o que me prometeu a vida ao me convidar a nascer. Desde jovem, ansiava por algo que nunca encontrei, e agora decido morrer por ter perdido a fé de que o homem é capaz de partilhar um grão de areia que seja com seu próximo. Tudo perdi. Cumpriu-se o texto que diz: “Até o que não tem, ser-lhe-á tirado”. Nada mais me resta, muito menos fé na vida.

Reconheceu Anselmo a voz do orador, era Paulo, mas não conseguia vê-lo por causa do grande número de pessoas que os separava. De imediato, sentiu-se bem-aventurado por não haver sentado junto daquele homem transtornado, o que obrigaria-lhe a ouvir seus recém revelados desatinos. Mas escutando aquelas pesarosas palavras, começou a sentir uma queimação que subia-lhe do ventre. Um suor frio começou a escorrer de sua testa, acompanhado de arrepios aflitivos, frutos impertinentes da vergonha que sentia de si mesmo. Entendia que não era sobre ele que falava o orador, mas sentia-se enquadrado em suas acusações generalizadas.

De súbito, ouvi-se um estampido, seguido de agudos gritos femininos e brados de homens desesperados. Uma onda de terror eletrizou a todos, muitos romperam em prantos. A multidão impedia Anselmo de ver as roupas de vários passageiros banhadas no intenso rubro do sangue que jorrava e da massa encefálica espalhada em todas as direções, inclusive no teto. Paulo puxara uma arma da cintura e dera um tiro na própria têmpora direita, num gesto tão veloz e inesperado que muitos sequer entenderam o que havia acontecido.

O ônibus encostou. Anselmo abriu caminho entre a multidão para chegar ao corpo, mas desistiu no meio do caminho, vendo a poça de sangue que se expandia lentamente pelo chão do veículo. Sentiu sua pusilanimidade pesar-lhe as pernas como uma bola de ferro. Conseguiu ver a arma jogada entre os pés dos passageiros. Pensou em dar cabo da própria vida como fizera Paulo, mas não teve coragem. Perguntou-se no meio da aglomeração se alguém conhecia o morto. Anselmo ignorou o apelo, desceu do ônibus e seguiu em direção ao trabalho.

2 comentários:

Anônimo disse...

muito massa o texto.
vc se garante.
xeru,meninow
Deus te abençoe.
Continua orando por mim hein?

suzana_rebeca disse...

Filho da mãe.