Do amor e outras coisas que se podem trocar - Parte 3

Sandra refletiu durante todo o trajeto do apartamento de Fernanda até a loja, mas nenhuma solução apresentava-se satisfatória. Concluiu que somente apelando para seu dom da sedução, do qual possuía absoluta consciência, conseguiria safar-se. Em qualquer outro cenário teria cogitado tal possibilidade como primeira alternativa, mas a vítima em questão não se tratava de um rapazinho bem criado da Zona Sul, carregando as vontades sobre a fronte como se fossem uma coroa. Era um suburbano batalhador como seu pai e, mais do que isso, o único homem de quem tinha lembrança de tê-la tratado com respeito. “Mas que mundo estranho! Passo a vida enganando os homens e por eles sendo enganada, e justamente quando encontro um que merece um pouco mais do que isso, sou obrigada a enganá-lo da mesma forma”, se desesperava. Sentia-se como que presa a este fatídico destino.

No dia seguinte, deu início aos engendros de sua estratégia. Acordou cedo e vestiu-se fitando atentamente o relógio para não se atrasar nem adiantar em relação ao horário do ônibus em que encontrara Mário da última vez. Escolheu a dedo a roupa que vestiria. Substituiu a saia curta e o decote agressivo por um vestido branco singelo, estampado com flores, que atribuía-lhe um ar meigo, mas ao mesmo tempo revelava suas formas curvilíneas. O tecido alvo ressaltava ainda mais o tom forte e reluzente da pele de Sandra, revelada principalmente em suas espáduas nuas e seu busto semi-descoberto. Soltou os cabelos, perfumou-se mais que o de costume e saiu.

Chegando ao ponto de ônibus, pouco esperou. O coletivo chegara exatamente de acordo com o previsto. Embarcou no veículo, entregou o dinheiro ao cobrador e de pescoço esticado procurava atentamente o rosto quadrado e viril de Mário. Lá estava ele, sentado num dos bancos e, com a cabeça reclinada sobre o encosto e com a testa encostada no vidro, olhava perdidamente através da janela. Sandra cumprimentou-o com um vivo sorriso que foi prontamente correspondido. Eis o que havia se passado com ele. Após despedir-se de Sandra há dois dias atrás, Mário ficou incomodado com a confiança gratuita e desmedida que sentiu naquela moça. Sequer a havia visto antes e já lhe confiava o aparelho mais caro que possuía. A propabilidade lógica de que ela desaparecesse por completo era muito grande. O valor do prejuízo financeiro não lhe importava, mas sim a atitude exageradamente ingênua que tomara. O que responderia ao Sr. Sílvio, homem prático e materialista, se este lhe perguntasse pelo aparelho? “Ora, Sr. Sílvio, emprestei-o para uma mulher que conheci no ônibus dia desses e ela surpreendentemente desapareceu. O senhor não acha estranho que ela tenha sumido com meu aparelho? Grande garoto! Muito espero!”, ridicularizava-se. O dia seguinte fora a confirmação de suas previsões mais pessimistas. Ela não estava lá como havia prometido. No momento em que Sandra cumprimentou-o, pensava ele justamente no grande tolo que havia sido, mas aquela aparição repentina, com ares de epifania, foi refrescante como uma ducha fria num cálido dia de verão carioca. Olhou para aquele belo corpo inclinando-se para sentar ao seu lado, a boca de lábios arteiros que sorria-lhe, as mãos delicadas que traziam seu caro aparelho intacto e pensou: “Uau! Eu sou mesmo um grande sortudo”.
- Pensou que eu fosse sumir, né? Desculpe pelo susto que eu lhe dei ontem. Acontece que passei muito mal e não fui trabalhar. – disse Sandra com um traquejo carregado de feminilidade e olhar fugidio, simulando timidez.
- O importante é que você está aqui. – respondeu Mário, que foi instantâneamente arrastado pelos próprios sentidos, todos cativos dos atributos de Sandra. Os olhos deliciavam-se com o decote comportado, porém insinuante; os ouvidos apreciavam a voz suave e melodiosa; as narinas dilatavam-se para captar mais daquele perfume que parecia encher o mundo; a pele do braço rejubilava-se com as frequentes encostadinhas no de Sandra, derivadas dos solavancos do coletivo, que revelavam uma cútis suave e macia; o paladar, este sim, o único dos sentidos a não fazer parte da festa, sedento, pressionava e coagia o resto do corpo para que o convidassem a participar, mergulhando-o no sabor desconhecido daquela boca húmida e quente.

Mário estava efetivamente interessado em Sandra, mas era um rapaz diferente do convencional. Enquanto a maioria rendia-se ao deleite dos sentidos, buscando a satisfação imediata de suas vontades, Mário acreditava no amor perfeito, ideal e utópico que conhecera nos livros de Goethé. Era o misto de romantismo alemão e lascívia brasileira, resultando num emblemático amálgama de elevadas expectativas morais e grandes cargas de desejo sexual. Este último, herança congênita da santíssima trindade carioca – samba, futebol e mulatas – na qual jazia alegremente. A alternância de duas influências tão dicotômicas processava-se naturalmente na mente de Mário e era para ele a forma correta de viver e se relacionar. Quando saía para as festas, pagodes e noitadadas acompanhando os amigos, enquanto estes se agarravam com várias moças na mesma noite numa disputa bestial por quem era o mais sedutor, Mário, por sua vez, costumava escolher tranquilamente entre todas as presentes aquela que seria alvo de sua inteira atenção. Às vezes tratava-se da mais atraente da festa, aquela a quem todos julgavam inatingível. Noutras ocasições, porém, escolhia a que fora preterida pelos demais homens, por enxergar beleza oculta nalgum detalhe que os outros não percebiam, como a meiguice de um olhar tímido ou o fulgor de um sorriso espontâneo. Fosse quem fosse, uma vez escolhida, tal moça seria cercada de delicadeza e reverência como nunca antes experimentara. Conversava sem pressa, olhando nos olhos, ouvindo atentamente, como quem gostaria de estender aquele papear noite adentro. E deveras gostaria. Mário encarava, a seu próprio modo, cada pessoa como uma única e original combinação das nuances da natureza humana, como um quadro que teve suas cores escolhidas individualmente por seu pintor e, assim como a unicidade absoluta da impressão digital, sabia ser impossível encontrar duas pessoas com características idênticas e, por isso, dedicava-se integralmente a alguém que acabava de conhecer, principalmente tratando-se de uma bela mulher. Deliciava-se ao descortinar o universo particular alheio e descobrir os detalhes imprevisíveis de uma personalidade desconhecida. Apesar de dar vazão à sua volúpia quando encontrava contrapartida em sua acompanhante, Mário abdicava do prazer ao deparar-se com uma moça fragilizada, recém-saída de um relacionamento fracassado ou sofrendo uma crise de auto-estima, ao contrário de seus amigos, que consideravam tal brecha uma oportunidade de ouro para seus intentos.

O papo no ônibus prosseguiu animadamente entre os dois, que demonstravam uma empatia mútua tão grande que por diversas vezes esqueceu o rapaz de seu desejo e a moça de seus ardis. Simplesmente conversavam, riam e se descobriam. Sandra achava-se inteiramente à vontade na companhia de Mário; sentia-se cobiçada, mas não por conta de seus trejeitos planejados e sim - coisa estranha! - por alguma aura inebriante que os cercava, tornando as palavras e movimentos de ambos aprazíveis. “Será isso o tal do amor?”, pensava maravilhada. Entrementes, Mário não cessava de pensar no quão sortudo era. Já havia conhecido mulheres tão ou mais belas que Sandra, mas nenhuma delas tão segura de si quanto esta, que gargalhava tão logo achasse graça, inclusive de seus próprios gracejos, e não impedia o rubor de lhe subir à face ao falar do pai. A alma de Sandra parecia revelar-se deliberadamente diante dele, sem que fosse necessário nenhum esforço de sua parte. Até dos mínimos movimentos de Sandra emanavam energia e resolução. “Aí está uma moça admirável. Bela e dona de si.”, pensava Mário. Sentiam-se mais do que atraídos, pareciam titubear entre querer o outro como amigo ou amante. Mas indepentende do que viria a acontecer, sentiam no íntimo que o destino havia entrelaçado suas vidas.

Sandra, ao ver que o ponto de desembarque aproximava-se, caiu em si, como quem desperta de um doce sonho, e sentiu virem à tona, de uma só vez, todas as angústias que lhe corroíam até o momento em que encontrou Mário. Recordou-se de suas dolorosas conclusões: nenhuma mentira seria convincente o bastante para explicar o desaparecimento do tocador de músicas; suas colegas de trabalho a reputariam como uma moça frívola que pede bens alheios emprestados para se promover; dona Fernanda a consideraria uma aproveitadora ardilosa, que não possui nenhum senso moral em sua busca desenfreada por ascenção. A tragéria estava armada. As feições de Sandra transformaram-se e Mário notou imediatamente:
- Está tudo bem? Você está com uma cara estranha.
- Não se preocupe. Nós estávamos aqui conversando e eu esqueci dos meus problemas. Mas eles fizeram questão de me lembrar que existem. Mas está tudo bem. – disse Sandra. O ar lhe faltava, sentia o peito comprimido e algo lhe travava a garganta.
- Então me conte que problema é esse. Talvez eu possa lhe ajudar em alguma coisa. A solução às vezes vem de onde menos se espera. – respondeu Mário. Sandra ouviu aquelas palavras como uma resposta divina. Era como se um poderoso raio de luz penetrasse as densas trevas de seu desespero. Fitou os olhos de Mário, sorriu e, já dona de si, disse:
- Você está certo. Já está na hora de eu descer e se você puder me acompanhar como fez naquele dia eu lhe conto tudo.
- Mas é claro. – concordou prontamente Mário. Ambos levantaram e após driblarem a massa de pessoas que lotava o coletivo, desembarcaram. - Pois então. Me conte o seu problema. – continuou.

Sandra contou pormenorizadamente o caso e expôs sinceramente seu desespero. Fez isso sem nenhuma deturpação dos fatos ou vitimização de sua pessoa, tamanha era a confiança que depositava em Mário, que ouvia tudo atentamente, franzindo a testa e olhando para o chão, como se fizesse complicados cálculos matemáticos para elucidar a questão.
- Uau! Em que furada você se meteu. Veja bem, eu lhe daria o aparelho sem pensar duas vezes, independente dele ser caro, moderno, chique ou seja lá o que for, mas ele foi motivo de discórdia entre o síndico e os moradores onde eu trabalho, quando eu o ganhei na festa do condomínio. Eles diziam que um simples porteiro não saberia usar um aparelho sofisticado como esse. Se alguém perceber que eu não o tenho mais comigo, pode dar uma grande confusão, e o próprio Sr. Sílvio me conzinharia vivo. – disse ele gesticulando.

Apesar de visualizar claramente todos estes conflitos, Mário estava prestes a encará-los para solucionar o drama de Sandra, não por simples altruísmo, mas por achar que aquela situação não se apresentava por coincidência, mas por algum desígnio, dada a sinergia que havia entre eles. Mas não teve tempo de aprofundar seus pensamentos.

Sandra ouviu tudo com olhos arregalados, compreendeu os motivos de Mário e concluiu que suas alternativas haviam se esgotado. Um vento de torpor invadiu sua alma, semelhante à indiferença que um condenado à morte sente pelos detalhes triviais que permeiam a vida daqueles que continuarão a possuí-la. Olhou-o com frieza e disparou:
- Você gostou de mim?
- Eu adorei você. Mas... – Mário foi interrompido.
- Você me quer?
- Como assim? O que você está... – novamente foi cortado pelo tom seco de Sandra.
- Podemos fazer um acordo. Eu durmo com você quantas vezes quiser e, em troca, o aparelho é meu.

Mário congelou. Simplesmente não acreditava no que ouvia. Aquela incrível mulher que há poucos instantes parecia-lhe a incrível combinação de tudo que ele mais admirava, rebaixava-se agora à faceta mais vil dos relacionamentos humanos, a prostituição. Estatelado, fitava o resto gélido de Sandra, tentando em vão encontrar o sorriso represado de uma brincadeira de mal gosto. Em vão, tentou argumentar:
- Sandra, o que é isso? Eu não acredito que você esteja falando sério.
- Ora, sem essa! Eu sei muito bem o que você quer. Todos os homens são iguais e, caso não saiba, as mulheres também. Tudo nessa vida gira em torno disso: interesses. Você quer meu corpo, eu quero seu tocador de músicas. O que tem de novo nisso?! É assim desde que o mundo é mundo. Só que temos o polido costume de mascarar as duras verdades com belas palavras. Amor, paixão, amizade... Tudo não passa de hipocrisia! Somos as velhas bestas-feras de sempre, com a mesma sede de sangue, rasgando a dentadas aqueles que baixam a guarda para nós. Mas parece que a chacina não é tão prazerosa se não vestirmos a pele de doce ovelhinha, o olhar supreso da vítima ao ser abocanhada faz parte do deleite. Do contrário, qual o motivo de minha proposta ter sido recebida com tamanho espanto? Eu sei! Você se pergunta: “Como uma simples mulher desbaratou a estratégia que nós homens utilizamos há séculos!”. Eu entendi como tudo funciona e só quero facilitar as coisas.

Sandra estava ofegante. Seus busto ondulava ao intenso movimento dos pulmões. Os olhos cintilavam semicerrados num misto de ódio e carência. Mário, num relance, fez um apanhado geral dos fatos e, recuperando-se do abalo inicial, recobrou o domínio sobre si.
- Tudo bem. O acordo está feito, desde que você concorde com o meu único ponto.
- Como assim? – disse Sandra estupefata, que não esperava uma reação tão rápida e segura da parte dele.
- Não quero que você durma comigo, quero que me ame. Se me amar de verdade, o aparelho será seu.
- Hein?! Como você vai saber que eu te amo de verdade, seu louco.
- Nós saberemos. É impossível não saber quando se ama alguém. Você quer ou não o aparelho?
- Tudo bem. – disse Sandra num saboroso sorriso de criança que topa uma travessura – Como vamos fazer?
- Nos encontraremos sempre que possível depois do trabalho, a começar por hoje, e nos fins de semana sairemos juntos por aí. Conversaremos bastante, nos conheceremos e, que fique bem claro, não lhe encostarei um dedo. Você abrirá seu coração e se esforçará para me amar de verdade e, quando isso acontecer, o aparelho será seu.
- Feito. Começa hoje então?
- Sim, eu passo aqui na loja para lhe buscar.
- Não! – redarguiu Sandra num estalo, com vergonha do porteiro vir buscar-lhe à porta da elegante loja onde trabalhava. – A patroa proíbe namorados, maridos, noivos e essas coisas no ambiente da loja. Sabe como é, alguns são muito ciumentos...
- Tudo bem. Eu espero você depois do horário. Conheço um barzinho muito animado perto daquele nosso ponto de ônibus.

Sandra, radiante, entrou na loja com o aparelho pendurado na cintura, aliviada como se toneladas fossem retiradas de suas costas. Estava empolgada com o que aquele rapaz imprevisível poderia aprontar dali para frente. De tudo quanto se lembrava ter feito para conseguir alguma coisa, amar era a única que não constava em sua lista.

Mário estava convencido de que poderia fazer Sandra amar do jeito que aprendera nos livros de Goethé. Tinha dentro de si o material combustível necessário para fazer este novo sentimento arder no peito de Sandra, mas tudo dependeria, acreditava ele, do quão aberta ela estaria para amá-lo.

6 comentários:

Anônimo disse...

Fala cara...blzinha? Ainda naum li os seus textos...toh sem tempo agora...mas amanhã vo tratar de lê-los...me pareceram, numa rápida olhada, de muito bom gosto...té mais!!

gostei do "contodromo"...fikou maneiro!

Anônimo disse...

Oi Rafinha!!mininu,muito bom seus contos....c ta escrevendo super bem!!só uma pergunta: vc vai demorar pra postar a cont do último conto?..por favor,deixa de maldade...hehehe..
bjkas:)

Anônimo disse...

Gostei!!! Hehehe o Mario é louquinho... to curiosa pra ver no que vai dar.
bjokas

Krystal disse...

Que loucura!! A sorte desse "goethiano" é que a moça não tem marido neh... rsrs
Estou gostando demais da história!!! Vamos ver se a Sandrinha vai dar conta do combinado...
Abraços, Rafa!

Anônimo disse...

dá-lhe Rafael, tô empolgadíssima com a estória, continua ela logo pois estou curiosa.

suzana_rebeca disse...

Mário, a ignorância é doce! Rs!