Do amor e outras coisas que se podem trocar - Parte 2

Sandra bateu à porta da sala de dona Fernanda timidamente, pois nunca fizera tal coisa desde que fora contratada como vendedora da loja. Fez-se ouvir a voz gentil e polida da jovem senhora: - Pode entrar. Sandra abriu a porta, cumprimentou-a e tomou assento, sentindo o mesmo tremor de meses antes, quando sentara naquela cadeira para a entrevista de emprego. Agora, cara-a-cara com aquela figura que lhe inspirava temor e adoração, Sandra deu-se conta do quanto gostaria de ser como ela. Os cabelos lisos e hidratados, os dentes brancos, a pele rósea e brilhante, o rosto suavemente maquiado, o perfume inebriante que enchia o ambiente, as roupas estalando de novas, tudo naquela mulher parecia perfeito. Sandra, que numa eleição popular tinha grandes chances de ser eleita mais atraente que Fernanda, sentia-se encolhida sobre aquela cadeira como um religioso diante de seu deus.
- Mas deixa-me ver este tocador de música. – pediu animadamente Fernanda, recebendo da moça o aparelho nas mãos. – Uau! Que chique. Como é que usa esse negócio?
- É assim, olha... – E Sandra manuseou o aparelho mostrando-lhe como selecionar as músicas.
- Puxa, mas que legal. E eu andando com esse discman horroroso por aí. Coisa antiquada, minha nossa! Mas é que eu não sou muito antenada em tecnologia. Estou sempre a um passo atrás e preciso que alguém chegue, me dê um safanão e diga: Ei, sua atrasada, ninguém mais usa isso! – E riu, como se contasse uma anedota muito engraçada. Sandra acompanhou-a na gargalhada e realmente achou graça, não pelo que foi dito, mas por ver aquela adorada boca abrir-se revelando um mar de dentes brancos perfeitamente alinhados. Sandra pouco falava. Apesar de austera com relação aos horários, Fernanda resolveu relaxar do estafante dia de trabalho que vinha tendo e estendeu o papo em outra direção.
- Ai, como estou cansada. Tem dias que são um inferno! Parece que os fornecedores, cobradores e clientes combinam entre si para me atazanarem todos de uma vez. Quer saber? Estamos quase no fim do expediente, você tem algum compromisso? – Sandra fez que não com a cabeça. A pergunta soou-lhe aos ouvidos como tendo sido feita em polonês. Era simplesmente impossível cogitar que dona Fernanda, a própria, faria-lhe um convite. - Nós poderíamos ir a uma loja de eletrônicos aqui perto que vende esses tocadores de música. Eu vou comprar um como o seu. É isso! Eu mereço me presentear de vez em quando, ora bolas. E eu prefiro ir acompanhada de alguém que entenda do assunto. Depois nós tomamos um chope pra relaxar. Vai ser por minha conta, é o pagamento pela sua consultoria. – E deu boas risadas novamente, como se tivesse contado uma excelente piada.

Sandra sentia-se no céu. Estava saindo da loja antes do horário, na companhia da patroa, com o caro tocador de músicas a tiracolo e desfilando sob o olhar invejoso de todas as colegas. No caminho, Fernanda vasculhava as músicas disponíveis no aparelho.
- Dvorák?! Puxa, que gosto refinado, mocinha. É difícil encontrar jovens que gostem de música clássica hoje em dia.
- Meu falecido pai sempre ouvia Dvorák ao chegar do trabalho. Ele colocava o vinil na vitrola, sentava no sofá, me deitava em seu colo e assim ficávamos até a hora em que mamãe aprontava o jantar. Sempre que ouço, me lembro dele. – Sandra sentiu um pequeno sinal de embargo na voz e procurou se recompor para não pôr tudo a perder com um dramalhão inconveniente. Sacudiu o semblante e recomeçou: – Mas eu não gosto só de música clássica. Acho muito chata essa gente que torce o nariz para as músicas mais animadas. Eu ouço Dvorák com muito gosto, mas também adoro um bom pagode, um forró ou um funk. Se fizer a gente dançar, suar e extravasar, pouco me importa se é um ritmo “sofisticado” ou não. – Sandra surpreendeu-se com a própria franqueza. Ficou hesitante aguardando a reação de Fernanda. Aquele milésimo de segundo pareceu-lhe que teimava em passar. Será que havia ido longe demais? Afinal, pessoas refinadas como ela têm por hábito o acintoso rechaço aos ritmos populares.
- É isso mesmo! Eu também sou assim. Nas minhas festas sempre toca muita música animada. Tem gente que fica no canto fazendo bico, mas eu nem ligo. Eu pulo, danço e brinco muito. Eles querem que eu dance o que, a mazurca? Quando estou em casa lendo um livro, aí sim, coloco um clássico pra relaxar. Ler ao som do samba-enredo da Portela também não dá. – E riu com gosto uma gargalhada convidativa que foi prontamente seguida por Sandra.

Após Fernanda ter comprado seu tocador de músicas, foram elas a um elegante e bem frequentado bar com mesas espalhadas na calçada, cada uma protegida por um grande guarda-sol, de frente para a praia que ficava do outro lado da avenida. O sol exalava um calor aconchegante, o horizonte exibia a tonalidade avermelhada do início do crepúsculo e o vento passeava tranqüilamente pela orla, compondo assim um perfeito fim de tarde. A beleza de Sandra, explodindo saúde e jovialidade, somada à beleza madura e serena de Fernanda formavam uma combinação arrebatadora para os olhares masculinos ao redor. Até os homens que passeavam pela calçada de mãos dadas a suas mulheres não conseguiam evitar que seus olhos pousassem naquelas beldades e suas distintas perfeições. Fernanda, que já não se enxergava tão jovem e atraente como outrora, sentiu renovado seu coquetismo feminino e creditou intimiamente o sucesso a sua deslumbrante companheira de mesa.

Dois homens altos, elegantes e aparentando seus trinta e poucos anos apresentaram-se pedindo, com muita polidez e simpatia, permissão para tomarem assento, a qual foi-lhes concedida não sem um falso ar de fastio por parte delas. Ambos pareciam ter saído a pouco do trabalho. Trajavam ternos, estavam desvencilhados de seus paletós e com as gravatas afrouxadas. Deu-se início ao típico diálogo do cortejo, carregado de curiosidade e excitação. Sandra agora estava em terreno sólido. Sabia fazer-se desejada, atiçar o desejo masculino fazendo-se cheia de pudores. Fernanda, por sua vez, parecia ter voltado à adolescência. Sorria gratuitamente e fitava com fixação os olhos de seu par. Sentia-se extasiada, viva. “Nossa! Há quanto tempo não me sinto assim.”, pensava.

Dali seguiram para o espaçoso apartamento de Fernanda, que morava sozinha – divorciada e com a única filha estudando em Londres -, onde fizeram sexo por horas a fio. Findo o ato, após um banho e um breve momento de descanso, os homens despediram-se e foram embora. A habitual promessa da ligação no dia seguinte foi feita, mas recebida com indiferença por elas, que davam-se por satisfeitas e concluíram: “Acabamos de obter o melhor do que um homem pode dar. Quanto ao restante, já o conhecemos muito bem. Agora vocês podem sumir que pouco nos importa”. Este sentimento, que ainda não havia ganho a forma racional de uma idéia, tomou-as concomitantemente por razões bem distintas. Fernanda havia experimentado as frustrações do casamento com um homem indiferente e utilitarista. Sandra sofrera as desilusões da juventude nas mãos de rapazes voluptuosos. Mas longe de sentirem-se vítimas inocentes da guerra dos sexos, julgavam ter dado a volta por cima, eram as vitoriosas.

Deitaram-se na mesma cama, a despeito dos outros dois quartos mobiliados do apartamento, com a intimidade de duas irmãs que há muito partilham o mesmo espaço. Dormiram instantaneamente. Eram duas da manhã. Às oito, Sandra abriu os olhos e despertou maquinalmente preocupada com o horário do trabalho. As emoções do dia anterior pareciam-lhe um sonho distante, uma vaga, porém doce, ilusão noturna à deriva entre seus aturdidos pensamentos matutinos. Levantou-se e caminhou trôpega até a sala de estar, onde percebeu estar em trajes íntimos ao ver suas roupas jogadas pelo chão. A visão lhe trouxe um sorriso arteiro ao canto da boca, fazendo-lhe recordar as estripulias vividas na noite anterior.Vestiu-se, voltou para o quarto e sacudiu Fernanda, que relutante como uma criança forçada pela mãe a levantar-se para a escola gemia e recusava abrir os olhos. Após alguma insistência finalmente despertou, deu de cara com Sandra, perguntou-se porque uma funcionária de sua loja estava acordando-lhe em sua cama e levou alguns segundos até recapitular tudo que acontecera na noite anterior.
- Menina, que horas são?! – perguntou Fernanda, despertando completamente da sonolência num salto.
- São oito da manhã. Você precisa abrir a loja.
- É verdade. – Disse, sentando-se na beirada da cama e passando a mão pelos cabelos desgrenhados. – Mas veja o estado da sua roupa, está completamente amarrotada. Vá tomar um banho enquanto eu separo alguma coisa pra você vestir.

Meia hora depois deixaram o apartamento. Sandra trajava orgulhosamente uma calça jeans cujo valor ultrapassava o preço somado de todas as que já havia comprado. Enquanto caminhava em direção ao carro de Fernanda, pensava na sorte que havia tido ao encontrar aquele rapaz, cujo tocador de música fora responsável por, quem sabe, definir seu futuro. Já imaginava os inúmeros benefícios que aquela proximidade com Fernanda lhe traria. Quem sabe tornar-se a gerente da loja e ganhar um salário que sobrevivesse à avalanche de contas e prestações? Imaginava-se nas melhores boates da cidade na companhia de executivos, empresários, socialaites, artistas... “Eu posso até encontrar um homem rico que se apaixone por mim!”, devaneava com um respirar a plenos pulmões. Mas imediatamente um agudo sentimento de angústia dominou-lhe a alma ao lembrar de que devia devolver o tocador de músicas ao dono. Sentiu sua dignidade ferida ao recobrar que não havia cumprido sua promessa de devolvê-lo no dia seguinte e, coisa muito pior, ter cogitado a possibilidade de não mais entregá-lo ao dono. Esquecera-se até mesmo de que havia um dono. Mário parecia-lhe uma lembrança distante, como se o tivesse conhecido há muitos anos. Pouco lhe importava que as velhas senhoras de sua rua considerassem-na uma vadia, mas ficar com algo que não lhe pertencia era um crime que nunca tivera sobre os ombros. E sua fama, que já não era nada boa, tinha tudo para piorar ainda mais, já que ambos tinham amigos em comum e o abuso da boa-fé do rapaz se espalharia pelo bairro como fogo em palha seca. “Tudo bem. Devolvo o aparelho e digo para as meninas que era emprestado. Mas como, se eu passei o dia todo afirmando que ele era meu? Já sei! Posso dizer que fui roubada no ônibus, na volta pra casa. Sim, é isso. Ninguém vai desconfiar. Ah, mas aquela futriqueira da Carolina com certeza dirá pelas minhas costas que o aparelho não era meu. Sim, ela vai desconfiar dessa estória. Apareci com ele num dia e logo no outro digo que foi roubado. Ela certamente desconfiará. Mas pouco me importa o que aquelas víboras vão pensar a meu respeito, o que me preocupa mesmo é ela. Dona Fernanda pode achar que eu peguei isso emprestado com algum amigo visando aparecer para as outras meninas. Ela é uma pessoa instruída, que lê ouvindo música clássica. Vai me achar uma garotinha fútil. Ai, que horror!”, pensava ela, sentada no banco de couro do luxuoso carro de Fernanda, que cortava a avenida ladeada pela praia em alta velocidade, fazendo os cabelos de Sandra espalharem-se no ar pela força do vento. Quem visse aquela bela mulher, tão bem vestida e naquele carro importado, não imaginaria o quanto de desespero lhe dilacerava a alma. Não era capaz de imaginar como sairia de tudo aquilo sem passar por uma grande humilhação. Era sua via-crúcis.

4 comentários:

Anônimo disse...

"E deu boas risadas novamente, como se tivesse contado uma excelente piada." Adorei isso!! E o fato de você ter repetido me lembrou um pouco o C.S. Lewis, entre outros autores, que gostam de pontuar o texto com esses lembretes. Esse tipo de observação me traz o seguinte pensamento: eu não sei muito sobre a Fernanda, nem seu passado, só sei algo muito superficial... mas esse detalhe que vc coloca da risada tira a impessoalidade de um personagem que não é o principal... torna-o mais humano.

E, enfim... agora fiquei curiosa pra ver o que a Sandra vai fazer. Não demora a continuar não, tá? E me avisa, porque eu sou uma perdida na internet, sempre me esqueço de voltar. ^^
bjão Rafa

Anônimo disse...

lindo tu escreve muuuuuito!
Deus te abençoe e num para de jeito nenhum,q nem gosto tanto assim de ler mas to amando as tuas historias.
xero da amiga cearence

Krystal disse...

Parabéns, Rafael!!
Naum sabia que vc escrevia taum bem!!
Amei as historias, quero saber logo o desfecho da história da Sandra!!
Super abraço!!
Krystal, do Dot...

Anônimo disse...

Nossa.....como eu diria se ainda morasse em minas...o trem ta bao hehe.