Quatro Metros Quadrados - Epílogo

Behnken já imaginava que não seria fácil convencer Sofia a oferecer um almoço para um vendedor ambulante e seus herdeirinhos de lástimas. Mas sua obstinação o levou a conversar detalhadamente com a esposa, ainda que de forma um tanto embaralhada e confusa, a respeito de suas recentes preocupações. Fazia tempo que os dois não dialogavam tanto tempo sobre um assunto não-trivial. A princípio Sofia gostou de ver a preocupação de Behnken com o filho, mas depois ficou tensa com a idéia de recepcionar um desconhecido dentro de casa. Argumentou que alguém provavelmente semi-analfabeto não poderia acrescentar tanto quanto ela, psicóloga formada. Dizia não haver ninguém melhor para detectar qualquer problema com o filho, caso houvesse. Os dois se exaltaram, as vozes foram se elevando e a discussão ficou um tanto acalorada. Neste ponto Christensen apareceu na sala para ver o porquê dos gritos e ambos voltaram a si e retomaram a cordialidade. Sofia concordou em recepcioná-los "com a condição de que não transforme a casa todo sábado num Sopão da LBV", segundo suas próprias palavras.

O sábado chegou e a casa estava pronta para as visitas. Sofia ordenou que a doméstica preparasse pratos simples, porém saborosos, e que comprasse bastante sorvete para as crianças. Behnken estava num estado de excitação exacerbado, como se estivesse pronto a receber um chefe de Estado. Ensaiou diversos assuntos para discutir, perguntas a fazer, fatos para contar etc. Olhava para o relógio de dez em dez minutos, como uma criança afoita pela hora de sair para brincar na praça. Já havia avisado aos guardas do condomínio e ao porteiro do prédio que receberia uma visita não muito comum e que não deviam criar caso com um homem rudemente vestido acompanhado de duas crianças. Então agora era só questão de tempo. A não ser que ele resolvesse não comparecer. Que garantias teria de que o camelô realmente aceitaria um convite tão absurdo? Porque Josivaldo levaria seus filhos, a única coisa que lhe restou na vida, viúvo que é, para a casa de um desconhecido? Não teria ele dito que iria só para se livrar do inconveniente convite? Essas dúvidas lhe atormentavam a todo instante e lhe atrapalharam o sono daquela noite.

Às onze da manhã o interfone tocou.
- O senhor Josivaldo e os filhos estão aqui embaixo. Posso mandar subir? - Perguntou o porteiro.
- Sim! Sim! Mande-os subir! - Respondeu o eufórico Behnken. - Sofia, eles chegaram! Christensen! Venha cá. - Gritou efusivamente - Lembre-se do que lhe falei, seja educado e cordial. Você vai aprender muito com essa gente, você vai ver. Sofia, meu amor, você é uma mulher fina e educada, receba-os bem. Tenho certeza que teremos um dia muito agradável.
Alguns minutos depois a campanhia tocou e apresentou-se à porta um Josivaldo elegante, trajando um terno azul escuro - que apesar de um pouco surrado estava limpo e bem passado - barba feita, cabelos penteados e exalando um perfume muito agradável. Behnken se surpreendeu ao vê-lo e a partir de dali não soube mais o que esperar daquele homem, já que havia imaginado esta cena de forma completamente diferente, com um mulambo maltrapilho de semblante baixo se apresentando encabulado. Mas o que via era um homem de torso ereto, portando-se distintamente e muito seguro de si. As crianças eram encantadoras. Como o pai já havia prenunciado Joana era a simpatia em pessoa e Mário parecia mais introvertido. Ambos muito educados, cortêses e solícitos.

Uma hora depois, as crianças jogavam videogame no quarto de Christensen enquanto os adultos conversavam na grande varanda de frente para o mar. Uma brisa agradável refrescava o calor fustigante provocado pelo sol quente. A vista era inigualável.
- Vocês são privilegiados de acordarem todo dia com esta vista. Agradeçam muito a Deus. - Disse Josivaldo contemplando a imensidão do oceano.
- É uma pena que com o tempo a gente acostume. Passo semanas sem olhar para o mar, você acredita? É uma pena realmente. - Respondeu Sofia.
- Josivaldo, suas crianças são muito educadas. Elas não dão um passo sem antes pedir licença. - Disse o sempre entusiasmado Behnken.
- Obrigado, doutor. Realmente eu prezo muito por isso. Uma pessoa mal educada não chega a lugar nenhum. Quem gosta de conviver com um entrão? Lá em casa, um não dirige a palavra ao outro sem antes pedir licença. - Disse o sempre cortês Josivaldo.
- É realmente uma educação exemplar. Mas imagino que foi preciso ser austero com eles até se acostumarem. - Indagou Sofia.
- Não, não. É uma história engraçada, eu vou contar. Quando eles tinham uns sete anos fiz um acordo: numa semana me comportaria de forma completamente grosseira e na semana seguinte seria gentil e cortês. Depois disso eles poderiam escolher como agir. Na primeira semana, eu chegava em casa como um cavalo. Não cumprimentava e só perguntava o que me interessava. Pedia as coisas dando ordens, não dava atenção quando falavam comigo e de vez em quando levantava e deixava um deles falando sozinho. Hé-Hé. Que crueldade! Mas na semana seguinte eles notaram a diferença. Quando chegava em casa, cumprimentava a cada um e perguntava como estavam. Antes de pedir para pegarem algo, por exemplo, perguntava se estavam ocupados e sempre agradecia pelo favor. Desde então, eles nunca me dirigiram a palavra sem antes dizer "com licença".
- Interessante. Nós aqui também sempre ensinamos o valor da educação para o Chris, só que através do diálogo. - Comentou orgulhosamente Sofia.
No mesmo instante (para acrescentar algum tom cômico à narrativa) irrompeu varanda adentro Christensen:
- Mãe, eu quero tomar um pouco de sorverte, mas a Maria disse que não vai me dar antes do almoço.
- Ô, meu filho. Antes do almoço não. - Disse Sofia completamente embaraçada.
- Ah, mãe. Caramba! Eu quero só um pouco, vai... - Insistiu Christensen sacudindo os braços e batendo o pé esquerdo contra o chão.
- Tá bom! Tá bom! Diz pra Maria que eu deixei. - Aceitou a mãe, tentando se livrar do filho e daquela situação vexatória o mais rápido possível. Ela olhou para Josivaldo, sorriu sem jeito e se levantou dando uma desculpa qualquer.
- Você viu, Josivaldo? É disso que eu falo... - Behnken suspirou, baixou a cabeça, apoiou-a entre as mãos e voltou a murmurar. - Porque esse garoto não atenta pra vida?
- Se me permite, acho que o senhor está exagerando. O menino só precisa de um pouco de correção.
- É muito mais do que isso. Ele não gosta de ler, só ouve música que fala o que não presta, joga videogame o dia inteiro e não se preocupa com nada que não seja de seu interesse.
- Mas é só um garoto! Pode ter alguns defeitos mas o que você esperava?
- Hoje é só um garoto, Josivaldo, mas amanhã será um homem. Vai viver por aí sem rumo na vida querendo conquistar o mundo que o umbigo deseja e, quando conquistar, vai ficar perdido de novo, um morto-vivo. Vai ser um homem tão perdido quanto o garoto que é hoje. - Disse Behnken em tom exaltado. Josivaldo fez silêncio enquanto digeria aquelas palavras. Após alguns instantes disparou:
- Tem certeza que o problema é o seu filho?

Imediatamente o silêncio instalou-se. Behnken permaneceu inerte, fitando as ondas do mar que quebravam poeticamente sobre a areia banhada pelo sol dourado do meio-dia. Não piscava e não se podia sentir sua respiração. Sentado em sua confortável cadeira de aço e couro branco, com as pernas cruzadas e queixo apoiado sobre as mãos juntas, percorria em redor com olhos dispersos. Uma revoada de gaivotas cruzava o céu. Lá em baixo, uma família atravessava a avenida para chegar a praia. No calçadão, um casal de mãos dadas passeava despretensiosamente, como se o mundo tivesse parado só pra eles. Seu peito encheu-se de um desespero incontrolável. Sentia-se asfixiado, como se algo estivesse apertando sua garganta violentamente. Cogitou dar cabo da vida como a melhor solução para sua síncope existencial.

Dois anos se passaram.

Josivaldo chegou em seu ponto de venda na rua Uruguaiana, como fazia há uma década. Eram nove da manhã. Estendeu seu plástico azul sobre a calçada. Sentou-se em seu velho banquinho de madeira, apoiou o cotovelo sobre o joelho, o queixo sobre as mãos e observou sonolento os transeuntes. Olhou despretensiosamente para os lados, observando os demais camelôs. "Vejam só! Tem um ambulante ali vendendo livros. Estou mesmo precisando ler alguma coisa nova", pensou ao avistar um novo camelô da praça. Foi até lá e, ao aproximar-se, não acreditou no que seus olhos lhe mostraram: Behnken, trajando camiseta de malha, bermuda e chinelo de dedo.
- Behnken, é você? - perguntou atônito – Não é possível!.
- Claro, meu velho amigo. - respondeu Behnken maquinalmente. - Agora sou seu mais novo colega de trabalho.
- Meu Deus! O que aconteceu com você?
- Se acalme, companheiro. Parece até que está vendo um defunto. Imagino que me ver assim deve assustar mesmo, mas muita coisa aconteceu.
- Ande, homem! Conte logo. Não me deixe aqui morrendo de curiosidade!
- Bom... Depois que você foi embora naquele dia, refleti muito sobre minha vida. Tirei férias no trabalho alegando uma doença qualquer, viajei e passei dias à fio refletindo. Voltei com uma conclusão: havia lutado com as armas erradas uma guerra que nem mesmo existia. Empreguei todas as minhas forças para construir um espigão sobre meu umbigo. Eu o construí, mas o peso dele estava me esmagando. Então resolvi fazer alguma coisa pra me livrar daquele peso. Imaginei que ajudar os mais pobres aliviaria minha consciência. Então encabeçei um movimento de responsabilidade social na minha empresa. Como isso está na moda, não tive grandes dificuldades. Sugeri que adotassem uma favela e criamos uma escola por lá, distribuimos cestas básicas no Natal, agasalhos no inverno e coisas assim.
- Sim, eu vi até sua foto no jornal. Parecia que estava indo tudo tão bem. Como foi que você veio parar aqui?
- Pois bem... Eu comecei a me sentir realizado com tudo aquilo e passei a investir meu próprio dinheiro na causa. Fui investindo tudo sem dó. Vendi apartamentos, ações, resgatei reservas no exterior. Só que, a despeito do meu bem estar, minha casa começou a virar um inferno. Sofia me recebia em casa aos gritos. Brigávamos noite após noite. Christensen parou de me dirigir a palavra quando soube que eu “estava destruindo a herança dele por direito”, segundo suas próprias palavras. Não respondia nem mesmo com um gesto minhas tentativas de diálogo. Comecei a brigar por mais investimentos na favela por parte da empresa, quando o presidente me chamou para uma conversa. Disse que a imagem da empresa já havia sido sufientemente valorizada na mídia pelo meu projeto e que já era o bastante. Há! Aqueles pobres eram só um outdoor feito de carne de criança negra. Eu sempre soube disso, mas minha visão estava ofuscada por uma ingenuidade quase anjelical. Um mês depois fui demitido. Quando minha esposa soube disso, saiu de casa e levou Christensen com ela. Entrou com dois processos contra mim: um de divórcio e outro de interdição. Ganhou os dois. Eu perdi tudo, físico e emocionalmente. Meus antigos amigos não me recebem mais. Pensam que enlouqueci. Fiquei sem dinheiro, sem casa, sem esposa e sem filho. Fiquei sabendo que eles se mudaram pra Itália. Acho que nunca mais vou vê-los.
- Meu Deus! Que horror!
- Sabe, Josivaldo? Durante minhas noites de insônia eu te amaldiçoei, chorando de ódio, por ter aparecido em minha vida.
- Mas eu nunca disse pra você fazer nada disso, Behnken.
- Não com palavras. Descobri que as coisas mais importantes na vida são aprendidas sem elas. Eu sempre andei de cabeça erguida, olhando todos de cima do meu nariz. Mas aí você apareceu com toda sua altivez e seu orgulho. Me senti um nada. E como, sendo eu quem era, pude me sentir inferior a você? O topo invejando a base da pirâmide. Acho que desenvolvi alguma espécie de obsessão. Eu tinha que ser superior a você.
- Mas tudo o que você fez foi incrível. Você é um mártir social. Não se sente orgulhoso de todo bem que trouxe àquela gente?
- Você não entende! – a voz de Behnken começou a embargar - Eu fiz tudo aquilo por mim mesmo, pelo meu orgulho. O bem que aquelas pessoas receberam foi fruto da mais sombria cratera da minha alma.
- Mas e o seu filho? Você fez isso por ele, lembra? – disse Josivaldo, tentando elevar o astral do amigo, sem successo. As lágrimas começaram a rolar pelo rosto avermelhado de Behnken.
- Se tem uma coisa de bom nessa história toda é que meu filho, um dia, vai chegar no mesmo ponto que eu cheguei: vazio, desesperado, perdido... Mas ele vai ter um exemplo. Lembrará de mim nesse dia e dirá: Agora entendo porque meu pai fez aquelas coisas. Talvez nem tudo tenha sido inveja nesta minha sandice. No fundo, debaixo de toda a frivolidade, eu pensava nele. Sabe, Josivaldo? Nunca ensinei a ele nada sobre a vida. Era meu papel de pai fazer isso. Foi uma lição que me custou tudo, espero que ele faça bom proveito.
- Vai fazer, Behnken. Vai fazer... Eu fiz.

Os dois se abraçaram, derramaram lágrimas e caminharam lado a lado pelas ruas já abarrotadas do Centro da Cidade. Antes, peões mecânicos de um jogo vazio chamado sociedade. Agora, um pouco mais seres humanos sobre aqueles pares de chinelos de dedo.

7 comentários:

Anônimo disse...

Ual, hein!
Profundo, meu!
Irado o Conto, Rafa!!!
Na boa... vc é um talento escondido, rapaz! Gostei mt do texto, e mais... deixa maior gostinho de quero +!!! hehehehe
Parabéns, viu!
Deus te abençoe!

Anônimo disse...

Eita, que final extremo! Bem anti-hollywoodiano, se é q vc me entende... a sua cara, rs.
bjs

Anônimo disse...

Até que enfim Rafa.....

Como a Ju disse, bem anti hollywoodiano, mais pra novela mexica de alta qualidade hahaha.

falando sério agora, adorei o final, nunca imaginei que chegaria a esse extremo, mas as vezes muitas reviravoltas acontecem.

Adorei o texto, vc sabe que me apaixonei pela historia desde o primeiro paragrafo.

beijão

Anônimo disse...

Rafael estou totalmente impressionado não sabia que vc escrevia tão, pow li os textos e adorei espero que vc continue a historia, cara vc está de parabéns....
Alias oq vc esta fazendo na area de info, acho que vc deveria esta em jornalismo cinema algo do tipo... rsrsrsrs..

ahhh eu passei o seu blog pra uns amigos, e eles assim como eu adoraram a historia....
flw brother abração, oq precisar estamos ai... ;)

Anônimo disse...

Oiiii Rafaell!!
Meu amigo Beto me passou seu blog me indicou e resolvi ler sua história.
Parabéns! Você é realmente um talento!!
Dá vontade de ficar lendo.. lendo.. lendo..
Continue suas histórias, pois vc tem o dom !!
Adorei!!!!!!
Beijosss

Kenny Santa Cruz disse...

Finalmente li, Rafa. Obrigado por mais essa pérola lapidada pelo Espírito Santo na tua cachola, e me perdoe, mas ainda não publiquei nada... hehehehe.

Grande abraço! Manda mais aí...

Anônimo disse...

sem palavras
faz muito tempo que não encontro um material dessa qualidade.
: )
muito dez,mocinho.
Deus o abençoe e lhe dê sabedoria pra continuar escrevendo.