Quatro Metros Quadrados - Parte 2

Na sala, que também era quarto e cozinha, desta casa de dois cômodos, estava instalada uma atmosfera de sono embalador. O breu da madrugada, o silêncio quase absoluto – com exceção do ruído emitido pelos grilos, que executavam uma melodia abstrata de relaxamento – e a respiração pesada de Josivaldo faziam parecer que toda a casa dormia com ele e seus filhos. A paz flutuava pelo ar daquele cômodo como um silencioso pássaro que os abençoava. Às quatro da manhã, um barulhento relógio despedaçou cruelmente a tranquilidade com seus berros digitais. Como fazia todos os dias, tentou parar o relógio antes que o barulho infernal acordasse Joana, inutilmente. Ela se levantou e foi de pronto, ainda que trocando pernas, para a pia preparar o café do pai. Vinte minutos depois, carregando pesados sacos de roupas, partia pela estrada de terra, a caminho do primeiro de três ônibus, um homem franzino de feições rústicas e castigadas pelo tempo, nas quais não se liam erudição ou conhecimento.

Exatamente às oito da manhã as cortinas do quarto de Behnken, onde não se podia enxergar uma forma geométrica sequer de tamanha escuridão, começaram a se abrir ativadas por um dispositivo automático, deixando penetrar os fulgentes raios de sol da manhã e revelando a beleza paradisíaca de uma praia da Barra da Tijuca, que desfilava pomposamente pela vista da enorme porta de vidro de seu quarto, que dava para a varanda. Envolto em lençóis e travesseiros, ao lado da esposa Sofia, ele se esforçava para abrir os olhos e depois de alguma relutância levantou-se cambaleando. Os primeiros pensamentos do dia costumavam ser relativos ao IGPM, CDI, IBX e outros indicadores financeiros que estavam aguardando por ele no jornal em cima da mesa. Mas foi diferente dessa vez. Seus pensamentos se voltaram para o ambulante. Nem sabia seu nome mas desde o dia anterior não conseguia tirar da cabeça a nobreza e altivez do pobre vendedor de rua. O motivo da fascinação era desconhecido por ele próprio, mas era inevitável compará-lo com seus amigos mais próximos, que venderiam a alma em troca de uma boa chance de lucro. Mas aquele homem iletrado não quis aceitar suas mixóridas - onde afinal ele havia aprendido essa palavra? - simplesmente para defender a dignidade de suas crianças. Sentou-se numa poltrona junto à parede do quarto e tentou aplicadamente lembrar-se da última vez que havia falado sobre dignidade ou qualquer outro assunto semelhante com Christensen. Depois de alguns minutos olhando para o azul brilhante do céu matinal, lembrou-se que alguns meses antes havia dito que não compraria o tênis que o filho havia pedido, mas que este deveria economizar a mesada para conseguir o tal calçado. Envergonhado, levou a mão à testa quando lembrou-se também que pagou pelo tênis, passados dois meses, como forma de premiação, quando o filho anunciou que havia conseguido juntar a quantia necessária. Uma sensação de impotência invadiu violentamente seu peito.

Como no dia anterior, o sol quente fustigava os transeuntes que se acotovelavam pelas ruas em seu habitual balé babilônico. Perto do meio-dia, quando a temperatura se aproximava do pico, Josivaldo animadamente anunciava sua mercadorias, enquanto seu estômago anunciava os primeiros alardes da fome. Abaixou-se para arrumar algumas camisas que estavam dobradas. Ainda com os olhos baixos, avistou um par de pernas masculinas trajando uma elegante calça social cinza clara. Seu corpo estremeceu, pois imediatamente imaginou que se tratava de seu mais recente desafeto. A expectativa foi confirmada quando Josivaldo levantou-se para cumprimentar o homem que estava parado a sua frente, e se tratava justamente dele: Behnken.
- Boa tarde, senhor. A que devo o prazer de mais esta visita? - perguntou amistosamente Josivaldo.
- Gostaria de pedir desculpas pelo meu comportamento grosseiro de ontem. Às vezes sou muito impulsivo...
- Contanto que o senhor não tenha vindo aqui sacudir seu dinheiro tentando comprar minhas desculpas, está tudo certo, doutor.
- Vejo que a má impressão que causei não se apagará sozinha. O convite para o almoço ainda está de pé e gostaria muito que aceitasse. - Propôs Behnken meio desconcertado com a frase do camelô.
- Claro! Porque não? O senhor trouxe os R$3,50 da quentinha que lhe falei? - Josivaldo aguardava a mesma explosão do dia anterior. Já preparava os ouvidos para os gritos descontrolados do ricaço. Mas este por sua vez, respondeu suavemente.
- Será um prazer almoçar com você. Mas o senhor há de entender que não fica muito bem para um homem da minha posição almoçar no meio da rua. Tenho clientes importantes e posso acabar me prejudicando se algum deles passar por aqui e me ver. Não é nada pessoal, por favor. Só creio que o senhor não perderia nada se pedisse a um de seus colegas de trabalho que vigiasse sua barraca enquanto almoçamos num restaurante.
- O senhor com certeza não entende que da mesma forma que o senhor se sentiria humilhado por almoçar em meio a todos esses ambulantes, eu também me sentiria se sentasse em meio a pessoas elegantes e bem vestidas como o senhor, enquanto trajo essas roupas surradas e exalo o odor de quem transpira desde que o dia raiou.

Behnken passou então a imaginar como seria entrar num bom restaurante acompanhado daquela figura mal vestida, suada e calçada com um barato par de chinelos de dedo. Tentava ponderar o que seria pior: sentar-se no meio fio e encarar uma famigerada "quentinha" ou levar o camelô a um restaurante que ele seus amigos de trabalho costumassem frequentar. E se um de seus clientes estivesse por lá, o que seria bastante provável? "Eu só posso estar ficando louco! Como é que eu fui entrar nessa?", pensava. O curioso era que neste ponto o ambulante já representava uma figura respeitável para ele. Não era mais possível simplesmente virar as costas e ir embora. Se o fizesse nunca mais teria coragem de passar por aquela rua e seria corrído pelo sentimento ter agido como uma criança mimada que cismou com um brinquedo na vitrine. Ser desprezado pelo ambulante era uma idéia que revirava-lhe o estômago. Concluindo que todas as alternativas lhe trariam algum constrangimento, decidiu encarar a situação desprendidamente. Meteu a mão no bolso com ar decidido, puxou a carteira, tirou uma nota de dez reais entregando-a ao camelô e pediu: - Traga para mim o mesmo que trouxer para você. Josivaldo ficou estupefato com a atitude inusitada do ricaço, mas tentou agir com naturalidade. Pegou o dinheiro, informou que voltava num minuto e dirigiu-se ao restaurante que vendia as quentinhas. Pouco tempo depois voltou com um saco plástico contendo dois volumes e refrigerante.

Sentados sob o meio fio entre dois táxis estacionados, com os cotovelos apoiados sobre os joelhos, segurando a quentinha numa das mãos e o garfo na outra, estavam lado a lado Josivaldo e Behnken.
- Estou muito surpreso que tenha aceitado um convite tão modesto. - Iniciou burocraticamente Josivaldo.
- É verdade - respondeu Behnken com um sorriso contemplativo -, minha esposa pediria o divórcio na hora se visse esta cena. - Sorriu desajeitado. - Mas eu não me importo.
- Se realmente não se importasse não teria agido daquela forma ontem. Imagino que alguma coisa o esteja impulsionando a agir assim - disse Josivaldo antes de levar mais uma garfada à boca.
- Sim, sim. É o meu filho. Tenho me preocupado demais com ele. Acho que ele está se tornando um garoto muito vazio e, não sei como explicar, mas vejo que ele só se preocupa com o que os outros vão pensar e tenta se impor aos amigos demonstrando mais condições financeiras - falou com ar pesaroso, quase não tocando na comida.
- Imagino que isso não tenha acontecido de uma hora pra outra.
- Pra falar a verdade eu nem sei - Sorriu desolado. - Meu trabalho sempre exigiu muito de mim. Além de me tomar várias noites e fins de semana também é preciso estudar muito. No mês passado concluí mais uma pós-graduação. E com esse ritmo fica difícil acompanhar certas sutilezas na personalidade de um filho. Mas não me arrependo de nada do que fiz. Foi graças a todo esse meu esforço que ele hoje tem tudo o que precisa. Estuda num bom colégio, tem boas roupas, conhece vários países...
- Então porque está tão desesperado? Seu filho tem tudo que precisa e parece valorizar o que tem dado a ele. - disse num tom de voz muito sincero.
- Talvez eu esteja apenas ficando louco. Hé-hé. Mas não consigo tirar da cabeça que meu filho é um jovem vazio. Mas diga-me uma coisa: como são seus filhos?
- São crianças maravilhosas, mas normais. Joana puxou a mãe e é uma espoleta. Se pudesse dormiria fazendo alguma coisa, mas como não pode, essa é a única hora em que ela pára. Já Mário é um garoto tímido, mas muito inteligente. Não do tipo que tira altas notas na escola, mas do tipo que entende tudo sem que se precise explicar. Nós três conversamos muito e somos muito ligados desde a mãe deles morreu
- Acho que se meu filho pintasse o cabelo de azul eu só notaria dois meses depois, isso se a tinta não tivesse saído na eventual ocasião do nosso encontro.
- O senhor é um bom pai. Sua preocupação com ele é um grande sinal disso.
- Então você vai me ajudar? - disse Behnken com os olhos cintilantes numa aberta expressão de esperança que deixou Josivaldo completamente desajeitado.
- Eu sinceramente não sei como ajudá-lo, mas farei o que me pedir.
- Excelente! Vamos marcar um almoço em minha casa neste sábado. Sofia, Christensen, seus filhos, você e eu. Será ótimo!
- Tudo bem. Farei de tudo para que meus flhos aceitem o convite, mas não vou obrigá-los, é bom que saiba.
- Claro que não. Mas diga a eles que lá tem videogames (você sabe como as crianças de hoje em dia amam os videogames!), piscina e uma linda praia em frente. Eles vão se divertir muito! Eu passo na sua casa para lhe pegar de carro.
- Absolutamente! Apenas me diga seu endereço e eu chegarei lá com meus filhos. Não se preocupe.
- Eu insisto!
- Em hipósete alguma. Espero que não insista. Mas acredito que teremos um dia muito agrável. - e sorriu abertamente.

Josivaldo anotou o endereço de Behken e acertaram um horário. Eles se levantaram, apertaram as mãos e Behnken foi embora em direção ao prédio da empresa. Estava muito pensativo. Não entendia porque estava fazendo aquilo tudo e sentia uma grande ansiedade dentro de si.

6 comentários:

Anônimo disse...

cadê o resto, quero saber o que vai acontecer quando o josivaldo chegar na casa do ricaço.....


esse texto ta muito bom, o problema é que vc ta devagar pra escrever...anda logo rapaz eu quero ler os outros capitulos rsrsrs

Kenny Santa Cruz disse...

Eeeetaa nóiz...
Vamo lá, bola pra frente!
:-)

Anônimo disse...

Este assunto não tem nada a ver com o texto acima, mas é URGENTE. Aqui é o Sorocabano. Tentei mandar uma mensagem para você, mas sua caixa de entrada estava cheia. Além de você, outros 21 usuários do Dotgospel receberam a mensagem, inclusive o MauMau. Limpe sua caixa de entrada e peça ao MauMau que lhe encaminhe a mensagem que acabou de receber de mim. Que Deus o abençoe e até mais, se Deus quiser.

Anônimo disse...

infelizmente tenho que aguentar e ler comentarios nada a ver com o texto por motivos idiotas e sem necessidade, mas por favor, dá pra continuar escrevendo, to aqui no limbo sem nada pra fazer...

Anônimo disse...

Eh...rs... maior curiosidade! :D
Mandando ver, hein, Rafa!!!!
:D Tah show!!!
Beijos

fabinhocarvalho disse...

muito legal este seu blog hein Rafael aja criatividade

abracos