O grande termômetro digital fincado no meio da Avenida Presidente Vargas marcava 39 graus. O sol escaldante parecia servir de combustível para a multidão de pessoas que se amontoava nas ruas do centro do Rio em seu costumeiro ritmo acelerado de quem tem uma vida a salvar na próxima esquina. Diante desse oceano de cabeças fluindo em todas as direções estava o camelô Josivaldo. Um plástico azul de quatro metros quadrados estendido na calçada bem a sua frente amontoava bermudas, camisas, calças e bonés, imitações de uma famosa marca estrangeira. 45 anos, viúvo, pai de dois filhos, morador de um longínquo município da Baixada Fluminense, levava quase 3 horas para chegar até seu ponto de venda na Rua da Uruguaiana, rotina esta que se repetia há uma década.
Uma das cabeças que boiavam naquele oceano era a de Benkhen - diretor financeiro de uma empresa de grande porte. Enquanto caminhava aceleradamente, lembrou-se do aniversário do filho no dia seguinte e que além do videogame de última geração havia pedido também uma camisa de uma marca muito cara. E bem naquela hora fitou de relance as mercadorias de Josivaldo. As cores gritantes das peças atraíram sua atenção e o símbolo da marca citada pelo filho saltaram-lhe à vista. Benkhen aproximou-se de Josivaldo com ar arragonte, de quem conhecia muito bem a posição de ambos:
- Quanto custa esta camisa aqui, meu caro? - perguntou de forma curta e seca.
- Dez reais a sem manga e quinze reais a com manga, doutor. - respondeu Josivaldo quase sem levantar os olhos.
Benkhen ameaçou virar as costas e seguir seu caminho não dando atenção ao vendedor, quando lhe ocorreu o pensamento: "Meu filho já tem doze anos e precisa aprender o valor do dinheiro. Não vou comprar a camisa que ele pediu na loja. Custa mais de duzentos reais. Ele vai ter que demostrar humildade contentando-se com essa do camelô".
- Eu vou levar a vermelha aqui. - disse, apontando para um modelo junto a seu pé. - Você tem papel de presente?
- Tenho não doutor. O senhor me desculpe a intromissão , mas o presente é para seu filho? - perguntou Josivaldo espantado com o pedido, observando as roupas caríssimas do cliente em contraste com o presente tão barato.
- Sim. - respondeu meio reticente, desconfortável - Eu quero ensinar a meu filho o valor do dinheiro e que nem sempre podemos ter aquilo que queremos. As crianças não podem crescer achando que o mundo vai dar a elas tudo o que querem, não é verdade?
- É verdade, doutor. Mas infelizmente eu luto para mostrar aos meus filhos que o mundo tem alguma coisa pra dar, porque até hoje a vida só tirou deles. Mas me perdoe, - disse, mudando o rumo da conversa - o senhor não tem nada haver com isso. Eu vou tentar conseguir um embrulho para o senhor com um colega que tem uma barraca aqui do lado. Aguarde só um momentinho...
De imediato Benkhen ficou indignado com a postura do camelô. Ele sempre havia considerado os ambulantes uns acomodados que viviam daquela forma por não terem vontade de vencer na vida. "Se Sílvio Santos conseguiu, qualquer um consegue", pensava ele. Mas por outro lado, imaginar os filhos daquele homem causavam-lhe um impacto estranho. Algumas cenas roubaram sua mente, como aquela em que seu eu filho Christensen se recusaou a ir ao passeio da escola sem uma bolsa nova, diferente da que usara em outro passeio poucos meses antes. Imaginar como aquelas crianças pobres sobreviviam com a renda ínfima do pai num bairro enlamaçado no fim do mundo o fazia ver como seu filho era um jovem raso e sem objetivos. De estalo, como fizera muitas vezes nas reuniões de trabalho - que tiraram a empresa do buraco em diversas ocasiões -, teve a insuitada idéia de promover um encontro entre as duas famílias. Porque não mostrar ao rapazinho que existia um mundo injusto lá fora e que ele precisava valorizar as dádivas que recebera por nascer numa família abastada? Mas propor isso a um camelô que acabara de conhecer era algo que ele não tinha noção de como fazer.
Josivaldo reapareceu entre os transeuntes com um colorido papel de presente nas mãos. Benkhen agradeceu com um sorriso amistoso, numa aberta mudança de atitude para com o ambulante.
- Quantos filhos você tem?
- Tenho dois, senhor. O Mário e a Joana. - respondeu Josivaldo.
- E qual é a idade deles?
- Eles são gêmeos e têm 12 anos.
- A mesma idade do meu filho! - anunciou efusivamente.
- Que coincidência, né? - balbuciou Josivaldo, sem entender o porquê de tanta empolgação.
- Sabe... Bem, eu nem sei como propor isso, mas... Eu realmente gostaria de que meu filho conhecesse seus filhos. Acho que poderia ser um encontro muito proveitoso para ambos.
- Hein? Do que o senhor está falando? - perguntou com os olhos arregalados.
- É, eu sei que parece um disparate, mas nossas crianças vivem em mundos diferentes, possuem formações, histórias e experiências distintas. Eu gostaria de mostrar ao meu garoto que existe outra realidade além das grades daquele condomínio e que ele precisa valorizar as coisas certas e não o dinheiro, status, aparência...
- E o senhor quer usar meus filhos como animais de zoológico para que o seu possa ver de perto o que é um pobre, coisa que ele só sabe que existe por causa da TV. Muito obrigado! Mas eles não estão à disposição do primeiro rico metido a besta que aparece querendo fazer deles um circo particular. - explodiu Josivaldo.
- Não! Não é nada disso. Eu gostaria muito de ajudar seus filhos. Imagino que deve ser difícil para você dar uma formação sólida para eles. Sem educação eles não vão chegar a lugar nenhum. Eu poderia pagar uma boa escola para eles. Não seja orgulhoso, homem! Pense neles... Eu não vou usá-los em circo, zoológico, nem coisa nenuma! Só quero ajudá-los. - disse num tom humilde e piedoso.
Josivaldo permaneceu parado fitando aquela homem elegante trajando terno fino, sapatos bem lustrados, óculos de armação leve. Tentava imginar de onde poderia ter saído figura tão inusitada, que inicialmente quereria apenas comprar uma camisa e agora tentava marcar um encontro com seus filhos. Em dez anos de trabalho nunca havia passado por nada sequer parecido.
- Me responda uma coisa com sinceridade: - indagou Josivaldo com voz mansa e olhar penetrante - Se eu, um camelô, lhe fizesse esta mesma proposta, como reagiria?
- Eu... Eu... Não sei. É realmente algo difícil de imaginar. Eu...
- Com certeza o senhor nem me deixaria terminar de falar, diria que sou um lunático e me enxotaria com grossuras. Mas utilizando-se de sua alta posição social, o senhor achou que poderia obter o que quisesse, chegar aqui e alugar minhas crianças a troco de algumas roupas, brinquedos ou qualquer outra mixórida. Agora eu lhe pergunto: com que cara eu olharia para os meus filhos, sabendo que o pai não foi capaz de lhes comprar essas coisas e que precisei entregar a dignidade delas em troca?
Benkhen ficou pasmo com a dialética do camelô e viu que não se tratava da figura do pobretão clássico - iletrado, selvagem e boçal - que havia alimentado em sua mente por anos. Mas ao invés de sentir-se amedrontado com a veemente recusa do homem, imaginou que ele serviria muito melhor para seus propósitos. Decidiu então marcar um segundo encontro:
- Bem, meu caro. Vejo que é um homem de muito valor. Não intentava de forma alguma lhe ofender. Gostaria encarecidamente que aceitasse meu convite para um almoço. Que tal amanhã? Podemos ir a um execelente rodízio de carnes numa rua aqui próxima. Não se preocupe, eu faço a gentileza...
- Como pode ver, senhor, trabalho aqui sozinho. Não posso deixar minha mercadoria abandonada. E ainda que pudesse, não aceitaria seu convite por motivos que o senhor já deve imaginar. Mas não me incomodaria se o senhor me acompanhasse em meu almoço amanhã. O senhor só vai precisar trazer R$ 3,50 para comprar sua quentinha e, se desejear, R$ 1,00 para o refrigerante.
- Você só pode estar brincando! - explodiu Benkhen. - Olhe para mim! Veja se eu tenho cara de quem come quentinha no meio da rua. Eu acho que fui longe de mais com essa minha loucura. Além de pobre é orgulhoso. Passar bem! - terminou de esbravejar enquanto virava as costas. Foi embora a passos largos, ombros retraídos e nariz empinado. Josivaldo abaixou-se para arrumar algumas camisas que estavam fora de ordem, como se nada daquilo tivesse acontecido. Seu olhar esboçava profundo descontentamento, enquanto seu rosto transmitia serenidade.
5 comentários:
Primeirinho né... legal, tou gostando, mas quero saber uma coisa: Só vai postar um por mês? rs
Ó, a anonima sou eu, a Guísela, rsrs
(Ler Dostoiévsky está realmente fazendo muito bem a você...)
Apenas pessoas que se interessam profundamente por questões sociais são capazes de enxergar o mundo além do "próprio mundo", neste nada-mais-nada-menos-que-eu-centrismo, pregado a cada um de nós diariamente, e aceito por quem realmente é pobre (de espírito).
Muito bom saber (sempre soube aliás) que você é uma delas!
Gostei da estoria, se vc naum me interrompesse toda hora eu teria gostado muito mais.....rsrsrs.
Mas continuemos a ler pois o negocio aqui tá bom...
Finalmente consegui concluir a leitura, Rafa - que por sinal correu fácil assim que me devotei um tempo só pra isso. E como eu já presumia o lance tá indo bem...
Parabéns, velhinho. Aguardo o próximo!
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